A AMORCRUSP precisa ter independência financeira!

É necessário que a Associação de Moradores do CRUSP encaminhe a discussão sobre independência financeira.

Abrimos neste texto a discussão sobre a necessidade da independência financeira da Associação de Moradores do CRUSP (AMORCRUSP), que funciona atualmente com o recebimento mensal do pagamento do aluguel de serviços privados que operam no espaço da Universidade de São Paulo (USP) cedido para uso da Associação. 

Contexto

Recentemente, a Associação de Moradores do Conjunto Residencial da USP (AMORCRUSP) foi notificada pelo Ministério Público (MP) sobre uma denúncia de irregularidades no pagamento do salário dos secretários e sobre uma suposta tentativa autoritária de inviabilizar a participação dos diretores da chapa FATAL(a atual gestão funciona de forma proporcional, com diretores de ambas as chapas que disputaram as eleições), ao mesmo passo que foi denunciado um suposto uso indevido dos recursos da associação. É incrível imaginar que opositores da atual gestão da Associação se utilizem do aparato da justiça burguesa, em lugar de apresentar suas críticas abertamente no interior das instâncias democráticas da Associação e deixar que os moradores decidam sobre as questões que lhes cabem. Desde que começou a intervir politicamente no CRUSP, a Organização Comunista Internacionalista (OCI) — à época Esquerda Marxista — explicou que a postura oportunista dos autonomistas e seus apoiadores ocasionais com relação ao dinheiro da AMORCRUSP não era apenas uma questão de comportamento pessoal, mas consequência de sua concepção política.

Isso se torna mais grave quando membros e muitos apoiadores da chapa derrotada Fatal fizeram parte de gestões passadas em que não havia nenhum tipo de prestação de contas sobre uso das verbas da Associação, algo que só mudou a partir da gestão da Avante, que apresenta seus relatórios e submete a aprovação nas reuniões de gestão e assembleias. A resposta ao MP foi dada com riqueza de dados e provas sobre as origens e destinação dos recursos e sobre as decisões da diretoria. Mas uma auditoria interna acendeu mais uma vez o sinal de alerta. Diferente das gestões anteriores, diante de uma situação de incongruências e erros, o tesoureiro foi afastado e posteriormente excluído da gestão e o controle total das finanças retomado e normalizado. Tudo foi apresentado em assembleia, que aprovou as medidas apresentadas pela gestão. Mas é preciso entender por que o problema das finanças reaparece, mesmo após a derrota dos autonomistas.

O programa da chapa Avante, desde o processo eleitoral, propunha a abertura do debate sobre a independência financeira da Associação. A chapa Avante era, então, composta por 3 militantes da OCI e vários alunos-moradores do CRUSP independentes e, inclusive filiados ao PT, mas que defendiam uma plataforma em comum conosco. Nem todos defendiam a independência financeira da entidade da mesma maneira que nós, mas compreendiam a urgência e se dispuseram à abertura do debate. O que acontece é que esse mesmo ex-diretor e ex-tesoureiro, que até então defendia nosso programa, passou a defender concepções autonomistas acerca do caráter da moradia estudantil. Da noite para o dia, o CRUSP não era mais uma moradia estudantil, mas sim uma ocupação, e, por ter sido eleito sob o antigo estatuto que reconhecia esse tipo de absurdo, esse diretor acreditava que poderia ser dirigente da associação mesmo não sendo mais estudante da USP. A última vez que vimos isso foi algum tempo atrás, quando os autonomistas reinavam em seu império de calúnia e corrupção, quando a USP não fazia nenhuma mudança estrutural, com respaldo da própria direção da Associação, que acreditava que o território era “autônomo” e não deveria ter interferência da universidade nos assuntos cruspianos. 

Antes de todo o problema vir à tona, esse ex-diretor foi notificado pela Universidade de que seu prazo na moradia havia acabado, ou seja, que deveria deixar o CRUSP dentro de um prazo determinado. Considerando que já havia concluído esse prazo, a maioria dos diretores da Avante entenderam que esse deveria entregar a vaga e consequentemente deixar a diretoria da Associação, já que deixaria de ser morador. A partir desse momento, o recém convertido autonomista passou a defender abertamente que o CRUSP é uma ocupação e que foi eleito sob o antigo estatuto que reconhecia que qualquer morador do CRUSP, mesmo sem vínculo com a Universidade, poderia ser dirigente da AMORCRUSP. O slogan desses antigos aventureiros autonomistas era “o CRUSP é de todos”. Contra isso, opomos o slogan “o CRUSP é uma moradia estudantil, um serviço público para garantia da permanência estudantil”, explicando que o CRUSP deveria ser tratado como o serviço público que é para atender aos trabalhadores e filhos da classe trabalhadora que conseguem acessar a USP mas não têm condições de morar na cidade. Com base nessa posição, nós ganhamos as eleições da Associação em 2023 e esse ex-diretor citado defendia com unhas e dentes nossa concepção. 

O momento de virada diz respeito ao momento em que, para defender sua vaga na moradia mesmo sem ser estudante e tendo passado já mais de 10 anos no CRUSP, esse ex-diretor precisou reverter, em um giro total, as concepções que defendia, a despeito do programa que foi eleito. As condições materiais afetam muito como os indivíduos podem pensar e se portar, caso não tenham firmes convicções políticas. Esse indivíduo dobrou suas convicções pessoais diante de uma dificuldade pessoal, em lugar de buscar reforçá-las e lutar para derrubar o sistema que cria tais dificuldades.

A condição da Associação de Moradores e do CRUSP é justamente essa, em que a concepção errada acerca do caráter da moradia, somada ao problema das finanças da Associação, que trataremos em seguida com mais detalhes, pode gerar — como gerou no passado, durante as seguidas gestões dos grupos autonomistas — uma corrupção sem fim, e não poderia ser de outra maneira. O que vemos acontecer é que, gestão após gestão, surgem indivíduos que usam do aparato da associação (e CAs, DAs, Grêmios, DCEs, sindicatos etc.) para práticas de corrupção, usando da entidade para garantir melhorias individuais em detrimento do desenvolvimento coletivo dos associados.

Independência financeira

As organizações de trabalhadores e estudantes passam por um profundo imobilismo frente aos diversos ataques do governo e da burguesia que escalam na atual crise mundial. A explicação desse imobilismo passa por compreender como se articulou a dependência das entidades ao Estado, uma prática que permanece até os dias de hoje e que tem suas raízes no período varguista. Não se trata de culpabilizar necessariamente os indivíduos aqui nesse texto. Mas os indivíduos estão submetidos a processos maiores e externos, que dizem respeito ao modo operante econômico das entidades. Para melhor entender, precisamos dar um salto atrás na história e compreender a origem do problema.  

No Brasil, herdamos até os dias de hoje a herança nefasta do período de Getúlio Vargas, onde os sindicatos são atrelados ao Estado. Essa dependência tem raízes profundas na luta da burguesia pela desarticulação dos organismos de luta dos trabalhadores ao longo da história. O primeiro governo a implantar um modelo de regulação dos sindicatos por parte do Estado foi o governo facista de Mussolini, por meio da Carta del Lavoro. O professor Pedro Bernardes, trabalhador da rede estadual de São Paulo, explicou isso da seguinte forma:

Mussolini destruiu os sindicatos independentes e construiu novos sindicatos ligados ao Estado, o que foi oficializado por um documento denominado Carta del Lavoro. Esse documento tinha como base a “oficialização” dos sindicatos, tornando-os instituições de concessão de benefícios e sustentados completamente pelo Estado, por meio do imposto sindical.

Com a tomada de poder por Vargas, este começou a trabalhar para fazer o mesmo no Brasil. Os sindicatos que aderiam ao “novo modelo” tinham garantido férias e outros direitos que a maioria dos sindicatos mais fortes, como ferroviários, já tinham conquistado. Durante os anos de 1932 a 1935 houve uma resistência a esta integração. Os sindicatos que não aderiam eram atacados pela polícia e seus dirigentes, presos. Depois da farsa da tentativa de “Putsch”, conhecido como a “Intentona Comunista”, feita pelo PC stalinizado em 1935 (dirigido por Prestes), o caminho estava aberto para a intervenção em todos os sindicatos independentes. O último a cair foi o sindicato dos gráficos de São Paulo, dirigido por Mário Pedrosa.

Exatamente esses princípios estavam presentes no processo radical de transformação do sindicalismo brasileiro. São os seguintes os pilares dessa então nova forma de existir dos sindicatos, dos chamados sindicatos CLT: 1. A tutela do Estado sobre o sindicato (É o Estado que “reconhece”, ou não, legalidade do sindicato outorgando a “Carta Sindical”); 2. O princípio da colaboração de classe do sindicato com o Estado e os patrões em defesa do “Bem comum”; 3. O princípio da unicidade sindical; 4. Sindicato assistencialista; 5. Imposto Sindical.

Com esses princípios se criou uma estrutura burocrática no sindicalismo brasileiro totalmente voltada aos interesses dos patrões, e acomodada. Afinal, com o dinheiro garantido pelo Imposto sindical, os dirigentes sindicais nem mesmo precisavam militar para convencer os associados a contribuírem. Fora isso, em vez de constituir o sindicato enquanto organismo de combate pela classe trabalhadora, o mesmo funcionava e funciona até hoje como fonte de benesses inócuas à classe operária em troca do silêncio e da desmobilização.

Alguns marcos históricos para melhor situar: Lei sindical de 1931 que atrela os sindicatos ao Estado; Decreto Lei 1402 de 1939, em que o Ministério do trabalho passava a aprovar ou não a criação de novos sindicatos; em 1943 passa a vigorar o Decreto-Lei 5452 de 1º de maio de 1943, que institui oficial e nacionalmente a CLT e os três princípios supracitados, que até hoje formam a base do sindicalismo brasileiro (ver em especial Art. 513 e 514 da CLT).1

Sobre esse assunto, o pesquisador Thiago Barison escreveu em sua tese de doutorado:

O que só se percebe de posse da máquina sindical é que ela impõe esforços de manutenção que desestimulam o investimento político e prático na auto-organização dos trabalhadores.

E quanto maior é a distância entre o movimento real e o aparelhamento, mais pesada fica essa máquina. Essa é a essência da burocratização, que não pode ser confundida com a institucionalização: esta significa o aumento e a perenização de certos padrões de organização que dão maior eficácia às práticas a que se destinam, ao passo que aquela significa a degeneração dessa relação entre meios e fins, de sorte que a organização se volta demasiadamente para suas ‘necessidades institucionais’.2

O Estado, como explica o marxismo, é o comitê de negócios comuns da burguesia. Quando o financiamento dos sindicatos é mantido ou intermediado pela burguesia, diretamente ou através do Estado, as entidades se tornam dependentes e o custo disso é o rebaixamento do programa político, o afrouxamento das exigências e uma linha política de “colaboração com o Estado”. Com isso, suas direções não lutam de fato pelas reivindicações dos associados e sim pela mera manutenção do aparato e, ao contrário do que deveria ser a razão das entidades, elas na verdade tem atuado como freio das lutas dos trabalhadores e estudantes.

Como funciona a dependência financeira na USP 

Em casos específicos, as entidades não recebem financiamento direto da burguesia — embora entidades estudantis, como a UNE, recebam o dinheiro arrecadado da carteirinha estudantil obrigatório3 [inserir referência] — ou qualquer financiamento do tipo por grupos empresariais. As entidades estudantis da USP atualmente recebem financiamento por meio do aluguel dos espaços públicos cedidos pela Universidade. Ou seja, é a sublocação do patrimônio público para fins privados. A Associação de Moradores do CRUSP é dos moradores e não de todos, ou seja, é uma associação privada, ainda que com fins públicos).  A AMORCRUSP, o DCE, os CAs etc., todos esses têm o mesmo método de arrecadação financeira: recebem aluguel de pequenas empresas que utilizam o espaço estudantil para oferecer um serviço privado, muitas vezes com preços que não condizem com a realidade dos estudantes trabalhadores da Universidade. 

Com esse tipo de dependência, cria-se uma série de situações complicadas.

Em primeiro lugar, os gestores não precisam de fato administrar e construir a vida cotidiana da Associação, pois com os valores dos aluguéis é possível contratar secretários que são funcionários da AMORCRUSP ou dos CAs e DCE e que cuidam de todos os assuntos administrativos de acordo com as diretrizes passadas pelos diretores. Na prática esse tipo de aparato pode dar vazão a uma luta meramente de manutenção do aparato por parte das gestões.

Em outras palavras, a partir desse tipo de organização da entidade, os diretores não precisam fazer ações políticas que justifiquem a existência da entidade e tendem a não fazer os combates necessários aos associados. Essa prática é problemática e pressiona cotidianamente a lançar a entidade em um imobilismo que não acompanha as necessidades dos moradores associados e ao mesmo tempo não atrai os associados a participarem da construção da luta política.

A associação deveria (e deve) ser financiada pelos próprios associados e por aqueles que julgam que o combate e a existência da entidade se justificam, porém no atual modelo de pagamento de aluguéis a situação é outra. Com o recebimento de aluguéis pagos pelas pequenas empresas, a Associação objetivamente cobra aluguéis de um espaço que deveria ser um espaço público e isso pode trazer implicações com a justiça burguesa em um momento em que a Universidade ou a justiça queiram avançar com os ataques às organizações dos trabalhadores e estudantes. A justiça burguesa em nível nacional e estadual aumenta seu poder e interferência nos assuntos da classe trabalhadora. 

No combate dos trabalhadores contra as privatizações de Tarcísio, o governador bolsonarista não poupou esforços para acionar a justiça para criminalizar os lutadores metroviários, ferroviários e da SABESP. Do mesmo modo, o governo tem prendido manifestantes contra o aumento das tarifas, em uma clara tentativa de intimidação que conta com todo o respaldo da justiça burguesa. O CRUSP não existe em um vácuo separado do resto do mundo e precisamos estar preparados e nos prevenir para todo possível ataque da burguesia contra nossas organizações.

Em terceiro lugar, a associação oferece uma série de serviços para os moradores que deveriam ser garantidos pela universidade pública. O estado deve ser responsabilizado pela falta de apoio aos estudantes filhos da classe trabalhadora. Os poucos que conseguem passar pelo filtro do vestibular são jogados na universidade sem acesso ao básico e por isso acabam desistindo de continuar os estudos. Alimentação, transporte, impressão de materiais, viagens a campo e outros serviços tão básicos para a manutenção das atividades acadêmicas devem ser garantidas pela universidade, como um pilar da permanência estudantil na USP. 

A xerox, por exemplo, só é usada na medida em que é insuficiente o serviço prestado atualmente pelas pró-alunos que deveriam ampliar sua medida de impressão gratuita. Esse serviço garante que os estudantes poderão usar todo o material necessário aos estudos, com a impressão dos textos e livros das matérias. A alimentação dos estudantes deveria ser responsabilidade da universidade, com a garantia, por exemplo, de 3 refeições diárias, todos os dias, inclusive aos finais de semana e feriados. 

A gestão AVANTE, do qual fazemos parte, tem conduzido o combate pela implementação desse direito dos moradores do CRUSP. Uma das soluções parciais e insuficientes da universidade foi a implementação do pagamento de um valor mensal de 300 reais para os cruspianos regularizados, um valor ínfimo que, sabemos bem, não cobre as necessidades mensais. Com o aumento constante da inflação nas prateleiras dos mercados na atual crise do capitalismo, esse auxílio deve ser aumentado com urgência.

A independência financeira é a independência política. 

As entidades podem e devem ser instrumentos de organização do movimento estudantil. A Associação passou nos últimos anos por períodos nebulosos onde servia aos interesses de autonomistas que não conduziam nenhum combate real dos moradores do CRUSP, o que levou a uma baixa adesão dos moradores na participação da vida política de sua entidade. 

Na prática, a AMORCRUSP servia aos interesses particulares de uma gestão que tinha como política manter moradores do CRUSP que nem sequer eram estudantes da Universidade. Esse tipo de política gerou um caso de corrupção onde um espaço público é apropriado como propriedade privada e os apartamentos são ocupados por um ou mais moradores sem vínculo com a USP, sem nenhum controle das vagas pela Universidade.

Além disso, com esse tipo de prática, o CRUSP não atende ao seu uso regular, que deveria ser o de moradia estudantil. Esse tipo de prática é reflexo das bases materiais da Associação de Moradores, e vai se prolongar enquanto esta atender a essa lógica viciada dos aluguéis.  Essa situação é um exemplo claro do que pode acontecer — e em quase todos, tem acontecido — com as entidades estudantis da USP que mantém essa lógica, e esse tipo de funcionamento/dependência deve ser combatido e derrotado, sob o risco de afetar a sorte das lutas do ME a partir de sua cabeça, que são as organizações do movimento estudantil. 

Os espaços da AMORCRUSP atualmente alugados podem seguir oferecendo serviços necessários ao morador, mas a gestão deve ser feita pela própria Universidade e imediatamente deve ser planejada a oferta de tais serviços de forma pública e não terceirizada!

Os militantes da Juventude Comunista Internacionalista (JCI), que atuam no CRUSP e fazem parte da AMORCRUSP convidam todos os estudantes-moradores e todos os que defendem a necessidade de uma Associação politicamente independente a abrir o debate e o combate para a independência financeira da entidade.

  1. NETO, Pedro Bernardes. Liberdade e independência sindical e as nossas tarefas. 2020. https://www.marxismo.org.br/liberdade-e-independencia-sindical-e-as-nossas-tarefas/. ↩︎
  2. Apud NETO, Pedro Bernardes. Liberdade e independência sindical e as nossas tarefas. 2020. https://www.marxismo.org.br/liberdade-e-independencia-sindical-e-as-nossas-tarefas/. ↩︎
  3. Ver https://liberdadeeluta.org/o-monopolio-da-carteirinha-estudantil-e-a-livre-organizacao-dos-estudantes/. ↩︎
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