A falsa inclusão dos jovens negros no ensino superior público sob o capitalismo

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No dia 13 de novembro, através do relatório “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, o IBGE divulgou dados sobre violência, mercado de trabalho, representação política, entre outros temas, adotando o critério de cor de pele como o comparativo da pesquisa.

Dentre os temas, o que imediatamente circulou entre jornais, redes sociais e principalmente organizações de esquerda foi o do Ensino Público. “Negros são maioria pela primeira vez nas universidades públicas, aponta IBGE”, do jornal O Globo, é a manchete que mais circula no momento.

A “boa nova” que ecoa é que foi identificado uma porcentagem de 50,3% de alunos negros, sendo 49,7% brancos e outros no Ensino Público superior. Essa “disputa” reverteu resultados de 2016, quando a proporção era de 49,5% de estudantes negros. O que esses dados representam, na prática? Podemos considerar uma vitória?

A falácia das porcentagens

Um ótimo meio falacioso de maquiar dados é usar valores relativos, como %, “metade” e “maioria”. Termos que, destacados do valor geral de referência, dão a sensação de que se trata da grande metade de um todo, mas na verdade não representam a realidade. Tratemos primeiro desses números.

O meio de ingresso ao ensino superior público é o Sisu, que seleciona os alunos mais bem pontuados no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). O número de inscritos em 2016 bateu os 9,2 milhões de alunos, enquanto 2017 teve 7,6 milhões, 6,7 milhões em 2018 e, por fim, 6,384 milhões em 2019. O número cada vez menor de inscritos, por si, já reflete um cenário de desânimo dos jovens ou mesmo a dificuldade de continuar os estudos em nível superior frente à crise econômica. Somam-se a isso os ataques dos diversos governos, desde Lula e Dilma até Temer e Bolsonaro, dos quais voltarei a falar mais a frente.

Apesar das baixas, essa demanda é espremida todos os anos em um funil que ofereceu 238.397 vagas em 2017 e 235.461 em 2019, por exemplo. Ou seja, apenas 3,1% e 3,6%, respectivamente, conseguiram acessar o ensino superior, empurrando 96,9% e 96,4% à desistência, ao emprego informal, à frustração ou à “máquina de moer pobre” do Fies operada por universidades privadas. Em números reais, estamos falando de 7,3 milhões (2017) e 6,15 milhões (2019) de jovens que tiveram seu direito ao ensino superior público negado pelo capitalismo e sua “Constituição Cidadã”. E o pior, por um critério meritocrático de competição, na concorrência de 27 jovens para cada vaga em disputa.

Os “volumosos” 50,3% incidem nessa pequena minoria que conseguiu se salvar da prensa. E é nessas pouquíssimas vagas que incide o critério das cotas sociais e raciais. Na prática, cria-se um recorte identitário para que os “melhores pobres” ou os “melhores negros e pardos” se matem para conseguir uma vaga. Considerando o número estatisticamente superior destes, o que se tem, na verdade, é um número ainda maior de candidatos por vaga, fazendo com que a nota de corte de cotistas chegue até a superar a de não cotistas em alguns casos.

A origem histórica das cotas

A crueldade colonialista dessa política deve ser exposta pelo que ela é desde sua origem e para que(m) serve hoje. Os precursores das cotas raciais, a multinacional Kellog’s e a Fundação Ford, lançaram porcentagens de inclusão da camada negra, ainda marginalizada, não no sentido de fazer caridade ou dar uma chance de ascensão social no sonho americano. Mesmo porque, com a mesma mão, a Ford financiava reuniões da Ku Klux Klan e era condecorada por Adolf Hitler como maior contribuidor estrangeiro do Partido Nazista. Por trás dessa “boa ação”, a condição social de que vinham os negros os forçou a aceitar sub empregos oferecidos por essas empresas para que garantissem não só uma mão de obra barata, mas a inserção no mercado de consumo sem garantir os direitos sociais mais básicos por parte do Estado, os tornando escravos das relações sociais do capitalismo.

Essa “inserção” de fachada saiu muito mais barato, ampliando o racismo e a subjugação entre classes. E é essa mesma a intenção da classe dominante: continuar a dominação, a exploração, o lucro e extração de mais valia. Hoje, esse descaso é nítido no problema da permanência, quando o Estado despeja o estudante na universidade sem qualquer auxílio em suas despesas, sem os direitos sociais básicos e tirando o tempo que poderia trabalhar para se manter. Praticamente uma coação à desistência que inclui ansiedade e depressão como cortesia da casa. Disso se conclui que a existência das cotas não só vira as costas para questões sociais e básicas de infra estrutura, mais do que isso, ela depende da desigualdade e existe justamente para preservá-la.

Mas se as maquiagens da inclusão tentam esconder o enorme depósito de reprovados, os índices de sangue derramado são explícitos. No mesmo relatório, estão presentes os números da violência que colocam as taxas de homicídio de homens negros de 15 a 29 anos em quase o triplo das incidências em homens brancos da mesma idade (ironicamente, a mesma faixa etária que disputa o ENEM). É supérfluo falar que aí estão incluídas as medalhas da Polícia Militar nos massacres diários ordenados por Witzel, João Doria, Temer e Jair Bolsonaro, cujas assinaturas estão intimamente ligadas a todos os indicativos sociais de exclusão que o relatório aponta.

Por ser praticamente consenso na esquerda de que devemos agarrar as cotas como um “pelo menos” imediato, logo se associa a crítica às cotas com a crítica à presença em si de pobres e negros nas universidades, como se acesso e cotas fossem termos indissociáveis, sinônimos, gêmeos univitelinos. O fator “inserção” não é exclusivo da política de cotas e sequer é esse seu verdadeiro objetivo. Sabemos que a verdadeira inserção do estudante pobre e negro se dará efetivamente com a universalização do ensino, com todo orçamento necessário à educação e a garantia de vagas para todos, pois a maioria dos jovens negros continua fora das universidades públicas e são empurrados para as universidades privadas ou mesmo desistem da graduação pelas necessidades da trabalho. Essa é a realidade que esses dados esconde.

Embora já tenhamos os recursos para que todos os jovens possam ter acesso ao ensino superior público e gratuito, o capitalismo nega esses recursos para nós. O que podemos fazer para que a juventude alcance a educação pública, gratuita e para todos que tanto precisa? Há uma série de reivindicações transitórias possíveis. Essas reivindicações devem estar na mesma direção e sentido do objetivo final, sendo nada menos do que passos em direção à solução definitiva do problema, arrancando pedaços cada vez maiores do que é direito da classe trabalhadora.

Lutar por vagas para todos é uma delas. A construção de novas universidades nas periferias é outro meio que caminha nesse sentido. Já as cotas raciais e sociais, na verdade, caminham em sentido contrário. Sob o pretexto de representatividade, criam um meio de inserção não só cosmético e claramente insuficiente, mas que deixa intacto o número total de vagas, o que termina diretamente aumentando a competição, seja em relação aos não cotistas, seja em relação aos próprios cotistas entre si.

Mesmo que se “conquiste” 100% de cotas para esses segmentos, ainda teremos os 95-98% de negros e pobres chutados para fora, destinando as poucas vagas aos melhores colocados. Então o que se enxerga como horizonte nesta política não carrega consigo a centelha da universalização do ensino público e gratuito. No máximo, uma meritocracia setorizada e vendida como “empoderamento”. Os problemas de concorrência e exclusão restarão intocados. Discutir migalhas é justamente o que a burguesia e os tubarões do ensino nos querem fazendo. Enquanto as direções de esquerda pautam seus debates na porcentagem de negros e brancos dentre as pouquíssimas vagas, as condições de permanência, os cortes e privatização seguem na agenda do governo Bolsonaro, o que vai tirar ainda mais jovens do acesso à universidade pública e gratuita. São esses elementos que evitam a profundidade da discussão e, consequentemente, o enfrentamento radical sobre de onde vem a falta de recursos que estrangula a educação.

O elefante na sala

Em plena crise do capitalismo, em pleno contexto de cortes e ameaça de fechamento de universidades, não é de se espantar que esse tipo de notícia circule os jornais e caia como luva aos desavisados da luta de classes. A tese de que o orçamento é curto e que é preciso definir prioridades vai de encontro com várias teses nos movimentos de esquerda. “De encontro” não no sentido de colidirem, mas no de andar de mãos dadas em direção ao precipício. Foi assim a discussão de Sâmia Bomfim e Kim Kataguiri, a convite do Quebrando o Tabu, onde Kim questiona qual deveria receber mais proporção do orçamento, entre ensino básico e ensino superior, partindo da premissa de que “os recursos são escassos”. A resposta, ao invés de apontar imediatamente a PEC 55 como uma das causas do estrangulamento dos recursos, engoliu a baliza e não expôs com a devida ênfase o enorme elefante na sala do orçamento público: A Dívida Pública.

Falar de prioridades é um discurso perfeitamente adaptado às desculpas de que é preciso sacrificar um direito para garantir outro, como disse o próprio Weintraub: – “Temos que fazer escolhas e alocar para quem mais precisa”. Da mesma forma é a discussão sobre qual cor de pele deve prevalecer nos corredores da universidade dentre as pouquíssimas vagas que existem, deixando às moscas a luta pelo Fim do Vestibular, a luta pela Educação Pública, Gratuita e Para Todos. Sequer se discute o aumento do número de vagas. Essa cortina de fumaça protege o maior câncer do Orçamento da União, blinda a principal responsável pela exclusão dos negros e pobres do ensino superior que é a Dívida Pública, afastando ela da fúria dos estudantes que já demonstraram sua força no 15 de maio e têm disposição de sobra para enterrar esse retrocesso.

A onda revolucionária, que já chegou a vários países próximos, explodirá no Brasil e teremos outros movimentos massivos, inevitavelmente. Mas precisamos ter clareza do que derrubar: O modo de produção capitalista e seu Estado burguês. Isso passa pelo Não Pagamento da Dívida Pública e pelo Fora Bolsonaro como tarefas imediatas. É preciso, também, saber o papel que jogam Lula, os partidos de esquerda e a direção da UNE na missão de desmobilização e conciliação de classes. Não há conciliação com a burguesia! A juventude precisa ser intransigente nesse sentido e atropelar qualquer direção que proponha soluções desse tipo. Assim como disse Fred Hampton, líder dos Black Panthers, que “não se combate capitalismo com capitalismo negro, se combate com socialismo”, devemos superar a política do “pelo menos” e levantarmos claramente a bandeira do socialismo, lutar pela Educação Pública, Gratuita e Para Todos! 

Todo Dinheiro Necessário Para a Educação Pública

Fim do Vestibular! Vagas para todos nas universidades públicas!

Não Pagamento da Dívida Pública!

Fora Bolsonaro!

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