A importância da teoria revolucionária
Este artigo foi originalmente publicado na brochura “Sou Liberdade e Luta”, lançada em nossa Conferência Nacional realizada em 23 de outubro de 2021. A brochura tem como objetivo registrar nossa história, nossa fundação, nossos princípios e nossas campanhas. Em 2023, completamos sete anos de existência e decidimos publicar o conteúdo dessa brochura para que todos possam ler e nos conhecer melhor. Ao final deste artigo você também pode baixar o PDF completo da brochura. Você pode contribuir para que possamos seguir publicando materiais como esse e para o autofinanciamento de nossa organização, doando qualquer quantia através do PIX: souliberdadeeluta@gmail.com. ISBN: 978-65-00-32924-7. Boa leitura!
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A base de um marxista é a práxis, isto é, a síntese da teoria e da prática. O marxista é um militante, sendo assim, dialoga com contatos e participa de reuniões; ele lê, estuda e o faz para entender o mundo, sua essência e o seu funcionamento. Se estamos dispostos a transformar o mundo e dizer o que fazer, também temos que estar dispostos a compreender a essência das coisas, seus processos e suas transformações. Sendo assim, analisar a materialidade não é uma tarefa simples, para fazê-la é imprescindível tomar para si conceitos e dar nome às coisas. Isso permite, por exemplo, que possamos entender até as menores sutilezas da conjuntura e a partir dessa compreensão decidir com precisão o que fazer.
Segundo Marx, “(…) aliás, toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das coisas”.¹ Para os marxistas isso se torna evidente: sem ir além da mera observação dos fenômenos, sem compreender a essência das substâncias, estaremos subjugados à ideologia da classe dominante, seremos devorados por ilusões e adotaremos ideias que não condizem com a realidade. Sendo o entendimento do mundo algo vital, existem camaradas que, ao longo da vida, se dedicaram ao estudo do funcionamento do mundo, na necessidade de se superar o capitalismo. Marx e Engels o fizeram no início do século XIX, superando o socialismo utópico e lançando a base do socialismo científico. Graças ao socialismo científico, o caminho do estudo do mundo material, como realmente é, foi sintetizado. Em vista disso, o marxismo se destaca de qualquer outra ideologia porque suas concepções não se baseiam, de modo algum, em ideias ou princípios inventados; elas são a expressão geral das condições reais.
Quando se fala de teoria, nada se tem a ver com ilusões, utopias ou coisas que surgem do nada. A teoria é o ideal, e, para os marxistas, o ideal não passa do material transposto à mente do ser humano e por ele interpretado, ou seja, a teoria é a representação raciocinada do mundo no pensamento; é o ato de transportar a essência do objeto estudado para a mente. Muitos denominam os comunistas de utópicos, de idealistas, de terem ideias que não condizem com a realidade e nada poderia estar mais equivocado. Em “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, Marx fala sobre a religião ser o ópio do povo e escreve:
A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo. A supressão [Aufhebung] da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real. A exigência de que abandonem as ilusões acerca de uma condição é a exigência de que abandonem uma condição que necessita de ilusões. A crítica da religião é, pois, em germe, a crítica do vale de lágrimas, cuja auréola é a religião.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Ed. Boitempo, 2019, p. 145.
As ideias da classe dominante formam um peso esmagador nas consciências dos homens e das mulheres e, sob o capitalismo, sem uma filosofia científica, os marxistas adotariam inevitavelmente a filosofia da burguesia e os preconceitos da sociedade em que vivem. Em síntese, a máquina de repressão do Estado, com seus homens armados, não é suficiente para manter o sistema capitalista. As ideias e a moralidade da sociedade burguesa servem de defesa vital dos interesses da classe dominante, sem uma ideologia poderosa o capitalismo não duraria por tanto tempo. Assim como a burguesia na sua revolução contra a sociedade feudal desafiou as ideias conservadoras da velha aristocracia, a classe trabalhadora, combatendo por uma nova sociedade, deve enfrentar a concepção dominante do seu opressor, a burguesia. É claro que a classe dominante detendo o controle dos meios de comunicação de massa, a escola, a universidade e o púlpito — conscientemente justificam seu sistema de exploração como sendo a forma natural da sociedade, não por acaso é comum nos depararmos com ditos como: “o mundo sempre foi assim”, “as coisas nunca mudarão”, etc.
O socialismo não é fruto de um homem-gênio que surge por mero acaso e que poderia ter nascido antes e poupado a humanidade de erros, lutas e de sofrimentos. As ideias que representam o socialismo moderno são o reflexo, na inteligência, da luta de classes que reina na sociedade, entre burgueses e os assalariados e, também, da anarquia que reina na produção. Apesar de ter suas raízes no terreno dos fatos econômicos, como toda nova teoria, liga-se à ordem de ideias de seus precedentes imediatos. Aparecendo, primeiramente, como uma continuação mais desenvolvida e consequente dos princípios formulados pelos grandes filósofos franceses do século XVIII. Bem como a superação do idealismo e mecanicismo presente em suas concepções. Duas grandes descobertas de Marx fizeram do socialismo uma ciência: a concepção materialista da história e a mais-valia. Tentar então, compreender o marxismo, a teoria marxista, sem entender o materialismo histórico dialético não é possível.
Em “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”, Engels esclarece a concepção materialista da história:
A concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes ou camadas, é determinada pelo que a sociedade produz e como produz o pelo modo de trocar os seus produtos. De conformidade com isso, as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas nas cabeças dos homens, nem na ideia que eles façam da verdade eterna ou da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca; devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata.
ENGELS, Friederich. Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. Marxists Internet Archive, 2003. Disponível em: <www.marxists.org/portugues/marx/1880/socialismo/cap03.htm>. Acesso em: 10 de jun. 2021.
A fonte essencial do desenvolvimento humano é o desenvolvimento das forças produtivas e essa é a premissa básica do materialismo histórico. Esta é a conclusão mais importante porque somente isto pode nos permitir chegar a uma concepção científica da história. O desenvolvimento da sociedade humana durante milhões de anos, para os marxistas, representa o progresso. Pois, aumenta o poder da Humanidade sobre a Natureza, criando condições materiais para alcançar a verdadeira liberdade para os homens e mulheres. Mas, diferente do que muitos pensam, o progresso não acontece em linha reta e rejeitar o materialismo é ter em vista que a única força motriz dos acontecimentos históricos são os indivíduos, grandes homens e mulheres, brilhantes. A concepção materialista explica que existe apenas um mundo material, não há Céu e nem Inferno. O universo sempre existiu e não é criação de um ser sobrenatural, é o processo de um fluxo constante. Os seres humanos fazem parte da Natureza e, com a evolução da espécie, desenvolveram a capacidade de pensar, a consciência humana. O cérebro é capaz de produzir ideias, pensamentos. Já a matéria sempre existiu e não depende da consciência humana. Para os materialistas é um absurdo uma consciência separada do cérebro, porque a matéria não é fruto da mente, mas a mente é o maior produto da matéria. As ideias, então, são um reflexo do mundo material que nos circunda, como dizia Marx: “A vida não é determinada pela consciência, mas a consciência é determinada pela vida”. Já para os idealistas, o caminho é o inverso: o mundo material é simplesmente um reflexo do mundo das ideias. Existem vários tipos de idealismo e, essencialmente, todos explicam que as ideias são primárias e a matéria, caso exista, é secundária.
Junto da concepção materialista da história, há também a dialética. De acordo com Engels, a dialética foi nossa melhor ferramenta e faca mais afiada. Ela é o nosso guia de ação, a bússola que nos permite perceber e entender as engrenagens do turbilhão de eventos e dos processos internos que dão forma ao nosso mundo.
Em o “ABC da Dialética Materialista”, Trotsky escreve:
A dialética não é ficção, nem misticismo, mas uma ciência das formas de nosso pensamento, na medida em que não se limita aos problemas cotidianos da vida, mas tenta chegar a uma compreensão dos processos mais complicados e profundos. A dialética e a lógica formal mantêm uma relação semelhante àquela entre as matemáticas superiores e as matemáticas elementares.
TROTSKY, Leon. O ABC da Dialética Materialista. Esquerda Marxista, 2021. Disponível em: <www.marxismo.org.br/o-abc-da-dialetica-materialista/>. Acesso em: 10 de jun. 2021.
A lógica é a ciência das leis do pensamento, todos os pensamentos que tivermos precisam satisfazer as exigências da razão e foram essas exigências que deram origem às leis do pensamento, aos princípios da lógica. Foi Aristóteles quem formulou o sistema da lógica formal e instituiu as três leis básicas da lógica: o princípio de identidade, da não contradição e do terceiro excluído. A lógica formal é a base dos grandes avanços da ciência moderna. O desenvolvimento da matemática foi baseado nessa lógica, por exemplo. A lógica formal é crucial e é responsável pela execução de muitas coisas no cotidiano, mas ela tem seus limites. Ao lidar com processos e eventos complexos ela se torna totalmente inadequada, porque a lógica formal considera as coisas como fixas, estáticas. A dialética, comumente e de modo equivocado, é tratada como algo místico, quando – na verdade – ela é uma tentativa de entender com mais clareza o mundo real, um mundo de constante transformação. Em “Anti-Duhring”, Engels afirma que a dialética é nada mais que a ciência das leis gerais do movimento, que é a lógica do movimento.
Em “Dialética da Natureza”, Engels descreve o processo da mudança:
É num curso circular eterno que a matéria se move, curso circular que só completa a sua órbita em espaços de tempo para os quais o nosso ano terrestre já não é mais escala suficiente; um curso circular, em que o tempo do desenvolvimento mais elevado, o tempo da vida orgânica e, mais ainda, o da vida de seres autoconscientes e conscientes da Natureza é medido tão apertadamente como o espaço em que a vida e a autoconsciência vêm a vigorar; um curso circular, em que cada modo finito de existência da matéria – seja ele sol ou nuvem de vapor, animal singular ou gênero animal, combinação ou dissociação química – é do mesmo modo transitório e em que não há nada de eterno senão a matéria que eternamente se altera, que eternamente se move, e as leis segundo as quais ela se move e altera. Mas, por mais frequente e por mais inexoravelmente que este curso circular se complete no tempo e no espaço; por mais milhões de Sóis e de Terras que possam nascer e perecer; por mais tempo que possa levar até que num sistema solar se estabeleçam, só num planeta, as condições da vida orgânica; por mais seres orgânicos inumeráveis que tenham que surgir e sucumbir antes de que, do meio deles, se desenvolvam animais com um cérebro capaz de pensar e encontrem, por um curto lapso de tempo, condições capazes para a vida, para, então, serem também exterminados sem piedade – temos a certeza de que a matéria, em todas as suas transformações, permanece eternamente a mesma, de que nenhum dos seus atributos se pode perder, e de que, por isso, também com a mesma necessidade férrea com que exterminará de novo da Terra a sua flor suprema, o espírito pensante, terá de novo que o produzir, nalgum outro sítio e noutro tempo.
ENGELS, Friederich. Dialética da Natureza. Marxists Internet Archive, 2018. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1876/dialetica/int_dialetica.htm>. Acesso em: 10 de jun. 2021.
O filósofo alemão Georg F. Hegel teve, como sua grande contribuição, o resgate do modo dialético de pensar que foi desenvolvido originalmente pelos filósofos gregos antigos há aproximadamente 2 mil anos. Hegel, apesar de idealista, foi a mente mais enciclopédica de sua época e ao abraçar a dialética liberou a história da metafísica. Mesmo Hegel sendo limitado pelo seu conhecimento, pelo conhecimento de sua época e pelo fato de ser idealista, ele, sistematicamente, delineou as leis importantes da mudança: a lei da quantidade em qualidade (e vice-versa), a unidade dos opostos e a negação da negação.
A mudança não acontece gradativamente em linha reta, há saltos na evolução, na transformação. Esse é o marco da compreensão da mudança: a lei da quantidade em qualidade. Por exemplo, há longos períodos de evolução onde não ocorreram aparentes mudanças e, de repente, surgem novas formas de vida. Ou seja, diferenças quantitativas permitiram uma mudança qualitativa, um salto de qualidade, a origem de novas espécies. Uma greve em uma fábrica é produzida por um acúmulo de mudanças dentro da fábrica que finalmente faz com que a força de trabalho entre em greve. O estopim da greve pode ser algo pequeno e acidental, mas, que se tornou “a última gota no copo”. As mudanças graduais na consciência dos trabalhadores levam a uma explosão na luta de classes.
Vivemos num mundo que é uma união de contradições, uma união de opostos: frio-quente, luz-escuridão, capital-trabalho, nascimento-morte, riqueza-pobreza, positivo-negativo, crescimento-crise, pensamento-realidade, finito-infinito, repulsão-atração, esquerda-direita, em cima-embaixo, evolução-revolução, chance-necessidade, venda-compra, etc. Uma das leis da dialética é a unidade dos opostos. Para entender algo, sua essência, precisamos entender suas contradições internas. A contradição é a fonte de todo movimento, somente até o momento que há contradição, há movimento, força e efeito, e o movimento também é uma contradição: estar em um lugar e em outro ao mesmo tempo. Para Hegel, “o movimento significa estar neste lugar e não estar, esta é a continuidade do espaço-tempo – e isto é que torna o primeiro movimento possível”. A causa se torna o efeito e o efeito se torna a causa, as coisas se transformam nos seus opostos. A lei da unidade de opostos é muito bem ilustrada pela luta de classes. A existência do capitalismo exige uma classe capitalista e uma classe trabalhadora. Cada classe defende seus interesses, a luta pelo mais-valor criado pelos trabalhadores e apropriado pelos capitalistas, isso leva a uma irreconciliável luta, a luta de classes. Uma luta que fornecerá a base para uma eventual superação do capitalismo e a resolução da contradição por meio da abolição das classes.
Como dito anteriormente, o progresso não é uma reta constante. O padrão geral do movimento histórico não é o de uma linha reta para cima, mas de uma complexa interação na qual cada passo adiante só é conseguido ao custo de um passo parcial para trás. A lei da negação da negação explica a repetição em um nível mais alto de determinadas características do nível mais baixo e o aparente retorno das características passadas. De modo breve, o progresso histórico é obtido por meio de uma série de contradições. A negação do estágio anterior não quer dizer sua total eliminação, visto que o estágio suplantado não é totalmente varrido do mapa.
Em “Anti-Duhring”, Engels usará de uma série de exemplos para ilustrar a negação da negação:
Tomemos, por exemplo, um grão de cevada. Todos os dias, milhões de grãos de cevada são moídos, cozidos, e consumidos, na fabricação de cerveja. Mas, em circunstâncias normais e favoráveis, esse grão, plantado em terra fértil, sob a influência do calor e da umidade, experimenta uma transformação específica: germina. Ao germinar, o grão, como grão, se extingue, é negado, destruído, e, em seu lugar, brota a planta, que, nascendo dele, é a sua negação. E qual é a marcha normal da vida dessa planta? A planta cresce, floresce, é fecundada e produz, finalmente, novos grãos de cevada, devendo, em seguida ao amadurecimento desses grãos, morrer, ser negada, e, por sua vez, ser destruída. E, como fruto desta negação da negação, temos outra vez o grão de cevada inicial, mas já não sozinho, porém ao lado de dez, vinte, trinta grãos.
ENGELS, Friederich. Anti-Duhring. Marxists Internet Archive, 2002. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1877/antiduhring/cap13.htm>. Acesso em: 10 de jun. 2021.
A cevada vive e se desenvolve para retornar ao seu ponto inicial, e retorna em um nível mais alto. Uma semente deu origem a muitas outras. As plantas, com o tempo, também se desenvolveram qualitativamente bem como quantitativamente. Sucessivas gerações mostraram variações e se tornaram mais adaptadas ao seu ambiente. Outro exemplo que Engels usa é o das borboletas. As borboletas nascem do ovo por meio da negação do ovo, passam por transformações até alcançarem a maturidade sexual, se acasalam e são, por sua vez, negadas. Elas morrem logo que o processo de acasalamento seja completado e a fêmea tenha posto inúmeros ovos.
A teoria norteia os marxistas. Por exemplo, por que a Liberdade e Luta pauta tanto a união operário-estudantil ou a independência financeira? Lênin, ao final de “O Estado e a Revolução” expressa o seguinte pensamento:
Naturalmente, o órgão de juventude ainda não tem clareza e solidez teóricas, e talvez nunca venha a ter, justamente porque se trata de um órgão de juventude impetuosa, efervescente e ansiosa. […] Outra coisa são as organizações de juventude, que se declaram abertamente que ainda estão estudando, que seu objetivo principal é preparar os trabalhadores para os partidos socialistas.
LÊNIN, Vladímir Ilitch. O estado e a revolução. Trad. Edições Avante!. São Paulo: Ed. Boitempo, 2017, p. 184.
Outro trecho interessante está na carta de Trotsky para a Liga da Juventude Socialista:
Um partido revolucionário deve, necessariamente, basear-se na juventude. Mais além, pode-se dizer que o caráter revolucionário de um partido pode ser julgado, em princípio, pela sua capacidade de atrair para as suas fileiras a juventude trabalhadora. E o atributo fundamental da juventude socialista – e aqui me refiro à juventude genuína e não aos velhos de vinte anos de idade – está em sua disposição para se entregar total e completamente à causa do socialismo. Sem sacrifício pessoal e heroico, coragem e determinação a história de modo geral não segue adiante.
Trecho da carta de Leon Trotsky para a conferência da Liga da Juventude Socialista, em 1938. Disponível em: https://liberdadeeluta.org/node/61 . Acesso em: 21 de jul. 2020.
Em ambas as citações se percebe que a juventude é imprescindível, pela sua força de vontade e animação para lutar contra o capitalismo. No entanto, há uma incapacidade de a juventude realizar, sozinha, uma revolução. A teoria marxista deixa claro que apenas o proletariado pode transformar as relações atuais de produção e construir o socialismo, isso acontece devido ao lugar ocupado pelos trabalhadores na linha de produção. A aliança operário-estudantil compreende que a juventude sozinha pode fazer muito estrago, mas, que é, também, incapaz de construir um processo revolucionário, porque somente o proletariado pode fazê-lo. O que leva à conclusão de que o partido do proletariado deve estar unido aos jovens e estudantes na luta pelo socialismo, aliás “um partido revolucionário deve, necessariamente, basear-se na juventude”. Mais a frente no livro “O Estado e a Revolução”:
Por isso, entre outras coisas, devemos nos colocar incondicionalmente ao lado da organização independente da união da juventude, e não apenas porque os oportunistas temem tal independência, mas também pela essência da coisa. Isso porque sem completa independência, a juventude não poderá nem formar bons socialistas, nem se preparar para levar o socialismo adiante. Por uma completa independência das uniões da juventude, mas também pela completa liberdade de uma crítica camarada aos erros. Devemos estimular a juventude.
LÊNIN, Vladímir Ilitch. O estado e a revolução. Trad. Edições Avante!. São Paulo: Ed. Boitempo, 2017, p. 185.
Sob o capitalismo, independência econômica é sinônimo de independência política. Há um jargão que diz: “Quem paga a banda escolhe a música”. A juventude deve, então, pagar sua banda e colocar suas músicas para tocar, e, assim, poderão encontrar clareza teórica e linhas políticas distantes do oportunismo numa organização que não terá medo de levantar suas bandeiras. Vimos isso quando a Liberdade e Luta da década de 70 não se importou em dizer, e ser a primeira a dizer, “abaixo a Ditadura”. Vimos isso também em 2019, quando a Liberdade e Luta foi a primeira organização política a pautar publicamente o “fora Bolsonaro”. A Liberdade e Luta está à frente das outras organizações, não por ter um militante gênio e iluminado que dita suas linhas políticas, mas, por ser uma organização de militantes que se apoiam na teoria marxista para decidirem o que fazer.
A Liberdade e Luta é uma juventude trotskysta que combate pelo socialismo no Brasil e no mundo. Ou seja, possui acordo político com a 4° Internacional Comunista. O programa da 4º Internacional se chama “Programa de Transição” e foi redigido por Leon Trotsky. Nesse programa o autor faz uma breve, mas profunda análise sobre a degeneração do capitalismo e a necessidade de uma revolução:
As premissas objetivas da revolução proletária não estão somente maduras, elas começam a apodrecer. Sem vitória da revolução socialista no próximo período histórico, toda a civilização humana está ameaçada de ser conduzida a uma catástrofe. Tudo depende do proletariado, ou seja, antes de mais nada da sua vanguarda revolucionária. A crise histórica da humanidade reduz-se a crise da direção revolucionária.
TROTSKY, Leon. O programa da revolução. Trad. Cláudio Soares. Brasília. Ed. Nova Palavra, 2008, p. 93.
O capitalismo degenerado, com um pé na cova e o outro na barbárie, lança base para o processo revolucionário, constrói seus próprios coveiros. As condições objetivas não só estão maduras, mas já começam a apodrecer. O capitalismo não desenvolve mais forças produtivas e para os marxistas, o desenvolvimento de uma sociedade é determinado pelo desenvolvimento de suas forças produtivas (meios de produção e força de trabalho humano). Nunca nenhuma ordem social desaparece antes de todas as forças produtivas que existiam nela estarem desenvolvidas. De modo brilhante, Hegel explica: “Foi por meio da escravidão que o homem se tornou livre”. A escravidão, no seu tempo, foi um grande avanço em relação à servidão. Foi um estágio necessário para o desenvolvimento das forças produtivas, da cultura e da sociedade humana. Da mesma forma que o capitalismo também foi um estágio necessário para o desenvolvimento da sociedade humana e que agora deve ser superado. Quando a Revolução Francesa (a revolução da burguesia) acontece, ela se manifesta sob o lema “igualdade, liberdade e fraternidade”, pregando a democracia. O feudalismo, incapaz de desenvolver forças produtivas, deu lugar ao capitalismo, que, inicialmente, foi capaz de fazê-lo. No entanto, o capitalismo se converte de um sistema progressista em relação ao feudalismo em um sistema decadente e reacionário que impede a humanidade de seguir adiante rumo ao reino de liberdade. O capitalismo, com seu teor progressista, suprime o feudalismo e, com suas contradições, lança base para o socialismo.
Uma das principais palavras de ordem da Liberdade e Luta é: “Público, gratuito e para todos. Transporte, saúde e educação”. Uma palavra de ordem que coincide com os lemas da revolução burguesa, mas, que no momento entra em choque com a burguesia, com o capitalismo e isso não poderia ser diferente. Como tática, Trotsky apresenta as reivindicações transitórias. As mesmas reivindicações, que coincidem com os lemas da revolução burguesa, quando levadas até o fim demonstram que só serão plenamente atendidas numa sociedade socialista. Essas reivindicações são necessidades atuais da classe proletária como educação, saúde, infraestrutura, etc. Exemplificando, quando um estudante quer uma cadeira melhor para estudar, ele vai à diretoria de seu colégio e questiona o motivo de não a ter. A réplica é de que não há verba. Vai, então, à Secretaria de Educação e recebe a mesma resposta. Depois disso, ao olhar o orçamento da União, o estudante percebe que quase 90% deste é dedicado a uma dívida pública sem fim que só entope os bolsos dos banqueiros. O mesmo acontece com um jovem que quer cursar a faculdade, mas encontra como obstáculo os vestibulares. Todo o dinheiro necessário para educação não é uma possibilidade no capitalismo, somente a superação desse sistema de barbárie e morte pode nos permitir ter acesso ao conhecimento acumulado pela Humanidade.
Sendo a teoria revolucionária um norte para as ações, é preciso estar atento – porque erros teóricos, cedo ou tarde, se transformam em desastres na prática. É imprescindível compreender o mundo para transformá-lo. A tática de aliança operário-estudantil não veio do além, as reivindicações transitórias também não, nem a palavra de ordem: “Público, gratuito e para todos. Transporte, saúde e educação. Abaixo a Repressão”, todas vieram da compreensão do mundo como ele realmente é, do entendimento da essência, e, não, da aparência das coisas. Isso exige conceitos, requer entendimento do mundo e demanda um debate político profundo, e, para isso, é preciso ter práxis. Marx, ao ser questionado de que “só falava e praticava academicismo que não convinha à classe trabalhadora”, disse “a ignorância nunca ajudou a ninguém”², isso se faz atual.
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Referências:
¹ MARX, Karl. O Capital – crítica da economia política. Trad. Reginaldo Sant´Anna. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2008, p. 1080
² Resposta de Marx em 1846, quando o socialista utópico Weitling se queixou que Marx e Engels só escreviam intelectualidades sobre temas que não interessavam à classe trabalhadora.
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