Burguesia, pequena burguesia e proletariado
Este é um trecho de Leon Trotsky chamado “Alemanha: o único caminho” publicado em 14 de setembro de 1932, quando Trotsky estava combatendo a ascensão do nazismo na Alemanha e a política adotada pela 3ª Internacional, sob Stálin, do “social-fascismo”, que na prática impedia a unidade entre os comunistas e a socialdemocracia alemã. É um artigo que ajuda a compreender o papel da pequena-burguesia e de suas relações com o proletariado e com a grande burguesia para o desenvolvimento seja do fascismo, seja da ditadura do proletariado. Publicado originalmente em marxists.org
Toda análise séria da situação política deve partir da correlação entre as três classes: a burguesia, a pequena burguesia (dentro desta, o campesinato) e o proletariado.
A grande burguesia, economicamente poderosa, representa uma insignificante minoria da nação. Para consolidar a sua dominação, se vê obrigada a manter determinadas relações com a pequena burguesia e, através desta, com o proletariado.
Para a compreensão da dialética dessas relações, é necessário distinguir três etapas históricas: o desabrochar do desenvolvimento capitalista, quando a burguesia precisava, para resolver suas tarefas, de métodos revolucionários; o período de florescimento e amadurecimento do regime capitalista, quando a burguesia emprestava à sua dominação formas democráticas, ordenadas, pacíficas, conservadoras; e, finalmente, a época da decadência do capitalismo, quando a burguesia se vê obrigada a usar de métodos de guerra civil contra o proletariado para salvaguardar o seu direito à exploração.
Os programas políticos que caracterizam essas três etapas – o jacobinismo, a democracia reformista (incluída aí a socialdemocracia) e o fascismo – são, em essência, programas de correntes pequeno-burguesas. Basta esta circunstância para mostrar o significado decisivo, prodigioso, verdadeiro, que a autodeterminação política das massas pequeno-burguesas do povo tem para o destino de toda a sociedade burguesa!
Entretanto, as relações entre a burguesia e a sua base social fundamental, a pequena burguesia, não residem, de modo algum, na confiança recíproca baseada numa cooperação pacífica. Como massa, a pequena burguesia é uma classe explorada e prejudicada. Coloca- -se diante da grande burguesia com inveja e muitas vezes com ódio. A burguesia, por sua vez, enquanto se serve do apoio da pequena burguesia, desconfia desta, pois teme sempre, com toda a razão, que ela esteja disposta a transgredir os limites que lhe são impostos de cima.
Enquanto aplainavam e limpavam o caminho para o desenvolvimento burguês, os jacobinos entravam em choque com a burguesia a todo momento. Serviram-na lutando irreconciliavelmente contra ela. Depois de ter preenchido o seu limitado papel histórico, os jacobinos caíram, pois, a dominação do capital já estava assegurada.
Por meio de uma série de etapas, a burguesia consolidava o seu poder sob a forma da democracia parlamentar. De novo, nem pacífica, nem voluntariamente. A burguesia manifestou o seu medo de morte do sufrágio universal. Por fim, graças à combinação das medidas de violência com as concessões, da miséria com as reformas, conseguiu submeter, nos quadros da democracia formal, não só a antiga pequena burguesia, mas também, em medida considerável, o proletariado. Para isso, se serviu da nova pequena burguesia – a burocracia operária. Em agosto de 1914, a burguesia imperialista, por meio da democracia parlamentar, pôde arrastar à guerra dezenas de milhões de operários e camponeses.
É exatamente com a guerra que se torna clara a decadência do capitalismo e, sobretudo, de suas formas de dominação democráticas. Já não se trata, agora, de novas reformas e concessões, mas de cortar e suprimir as antigas. Assim, o domínio político da burguesia cai em contradição, não só com as instituições da democracia proletária (sindicatos e partidos políticos), mas também com a democracia parlamentar, em cujos quadros se formaram as organizações operárias. Daí a campanha contra o “marxismo” de um lado, e contra o parlamentarismo democrático de outro.
Da mesma forma que as cúpulas da burguesia liberal, em seu tempo, foram incapazes, por sua própria força, de se livrar da monarquia, do feudalismo e da igreja, assim também os magnatas do capital financeiro, sozinhos, são incapazes de liquidar o proletariado com a sua própria força. Precisam do auxílio da pequena burguesia, que, para isso, precisa ser agitada, posta de pé, mobilizada e armada. No entanto, esse método tem os seus inconvenientes. Ao passo que se serve do fascismo, a burguesia o teme. Pilsudsky foi obrigado, em maio de 1926, a salvar a sociedade burguesa por um golpe de Estado dado contra os partidos tradicionais da burguesia polaca.
A coisa foi tão longe, que o líder oficial do Partido Comunista da Polônia, Warsky – que passou, de Rosa Luxemburgo, não para Lenin, mas para Stalin – considerou o golpe de Pilsudsky como um caminho que conduz à “ditadura revolucionária democrática”, e convocou os operários a apoiar Pilsudsky. Na sessão da comissão polaca do Comitê Executivo da Komintern, em 2 de julho de 1926, o autor destas linhas dizia a propósito dos acontecimentos da Polônia:
“Vista em conjunto, a insurreição de Pilsudsky é a maneira ‘plebeia’, pequeno-burguesa, de resolver as tarefas inadiáveis da sociedade burguesa decadente e em decomposição. Já existe, ali, uma aproximação direta com o fascismo italiano.
Ambas as correntes têm, indubitavelmente, os mesmos traços: as suas tropas de assalto são recrutadas, sobretudo, na pequena burguesia. Pilsudsky, como Mussolini, trabalha com métodos extraparlamentares, de violência aberta, de guerra civil; ambos se esforçaram, não paraderrubar, mas para salvar a sociedade burguesa. Ao mesmo tempo que puseram a pequena burguesia de pé, trataram, após a conquista do poder, de se unir abertamente à grande burguesia. Impõe-se agora, involuntariamente, uma generalização histórica, que nos faz lembrar a apreciação de Marx sobre o jacobinismo, como a maneira plebeia de ajuste de contas com os inimigos feudais da burguesia. Foi o que sucedeu na época de ascensão da burguesia. Pode- se dizer, agora, na época de declínio da sociedade burguesa, que a burguesia necessita novamente de uma maneira ‘plebeia’ de solucionar as suas tarefas, já não mais progressivas, mas inteiramente reacionárias. Neste sentido, o fascismo se torna uma caricatura reacionária dojacobinismo…
A burguesia em declínio é incapaz de se manter no poder pelos meios e métodos do Estado parlamentar que criou. Recorre ao fascismo como arma de autodefesa, pelo menos nos momentos mais críticos. A burguesia, entretanto, não gosta da maneira ‘plebeia’ de resolver os seus problemas. Manteve-se sempre em posição hostil ao jacobinismo, que lavou com sangue o caminho para o desenvolvimento da sociedade burguesa. Os fascistas estão imensamente mais próximos da burguesia em decadência do que os jacobinos da burguesia ascendente. Entretanto, a burguesia, prudentemente, não vê também com bons olhos a maneira fascista de resolver os seus problemas, pois os abalos, embora provocados no interesse da sociedade burguesa, são ao mesmo tempo perigosos. Daí a contradição entre o fascismo e os partidos burguesestradicionais.
A grande burguesia gosta tanto do fascismo quanto um homem com o maxilar dolorido pode gostar de arrancar um dente. Os círculos mais fortes da sociedade burguesa acompanham a contragosto a obra do dentista Pilsudsky, mas, por fim, sujeitam-se ao inevitável, embora com ameaças, negociações e transações. Assim, o ídolo de ontem da pequena burguesia se transforma em polícia do capital.”
A essa tentativa de assinalar o lugar histórico do fascismo como substituto político da socialdemocracia, foi oposta a teoria do “social-fascismo”. A princípio, podia passar por uma tolice inofensiva, embora arrogante e barulhenta. Os acontecimentos posteriores mostraram a perniciosa influência que a teoria stalinista exerceu sobre todo o desenvolvimento da Internacional Comunista.
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Resultará então, da função histórica do jacobinismo, da democracia e do fascismo, que a pequena burguesia esteja condenada a continuar como instrumento nas mãos do capital até o fim de seus dias? Se assim fosse, a ditadura do proletariado seria impossível numa série de países onde a pequena burguesia forma a maioria da nação, e extremamente dificultada em outros países onde a pequena burguesia representa uma minoria considerável. Felizmente, as coisas não se apresentam assim. Já ficou demonstrado, pela experiência da Comuna de Paris, nos limites de uma cidade, e, depois dela, pela experiência da Revolução de Outubro, numa escala incomparavelmente maior de tempo e de espaço, que a aliança entre a grande e a pequena burguesia não é indissolúvel. Como a pequena burguesia é incapaz de uma política independente (e eis porque a “ditadura democrática”, pequeno-burguesa, em particular, é irrealizável), só lhe resta escolher entre a burguesia e o proletariado.
Na época de ascensão e florescimento do capitalismo, a pequena burguesia, apesar de fortes acessos de descontentamento, quase sempre caminhou obediente na esteira do capitalismo. E não lhe restava outra coisa a fazer. Mas nas condições de decomposição capitalista e da situação econômica sem saída, a pequena burguesia tenta, procura, experimenta livrar-se dos grilhões dos velhos senhores e dirigentes da sociedade. Ela é perfeitamente capaz de ligar o seu destino ao do proletariado. Para isso, basta uma coisa: a pequena burguesia ter confiança na capacidade do proletariado de dar à sociedade um novo rumo. O proletariado só pode inspirar-lhe essa confiança por sua própria força, pela segurança de suas ações, pela destreza de sua ofensiva contra o inimigo, pelo sucesso de sua política revolucionária.
Mas que desgraça se o partido revolucionário não se mostra à altura da situação! A luta cotidiana agrava a instabilidade da sociedade burguesa. As perturbações políticas e as greves pioram a situação econômica do país. A pequena burguesia estaria disposta a conformar-se passageiramente com as crescentes privações se chegasse, pela experiência, à convicção de que o proletariado é capaz de guiá-la por uma nova estrada. Mas se o partido revolucionário se mostra sempre, apesar da intensificação ininterrupta da luta de classes, incapaz de reunir em torno de si a classe operária, se vacila, se se desorienta, se se contradiz; então, a pequena burguesia perde a paciência e começa a ver nos trabalhadores revolucionários os culpados de sua própria miséria. Todos os partidos burgueses, inclusive a socialdemocracia, empurram os pensamentos da pequena burguesia nesta direção. E é quando a crise começa a adquirir uma intensidade insuportável, que entra em cena um partido especial, cujo objetivo é trazer a pequena burguesia a um ponto candente e a dirigir o seu ódio e o seu desespero contra o proletariado. Esta função histórica desempenha hoje na Alemanha o nacional-socialismo, uma ampla corrente, cuja ideologia se compõe de todas as exalações fétidas da sociedade burguesa em decomposição.
A principal responsabilidade política pelo crescimento do fascismo cabe naturalmente à socialdemocracia. Desde a guerra imperialista que o trabalho desse partido consiste em expulsar da consciência do proletariado a ideia de uma política autônoma, inspirando-lhe a crença na eternidade do capitalismo e obrigando-o a ajoelhar-se diante da burguesia decadente. A pequena burguesia só pode seguir o operário se vê neste o novo senhor. A socialdemocracia ensina ao trabalhador ser lacaio. A um lacaio, a pequena burguesia não seguirá. A política do reformismo tira do proletariado a possibilidade de guiar as massas plebeias da pequena burguesia, e com isso as transforma em bucha de canhão do fascismo.
Para nós, porém, politicamente, a questão não fica de forma alguma resolvida com a responsabilidade da socialdemocracia. Já desde o começo da guerra que denunciamos esse partido como uma agência da burguesia imperialista no seio do proletariado. Desta nova orientação dos marxistas revolucionários nasceu a III Internacional, cuja tarefa consistia em unificar o proletariado sob a bandeira da revolução e as- segurar-lhe, assim, a possibilidade de exercer uma influência dirigente sobre as massas oprimidas da pequena burguesia da cidade e do campo.
O período de pós-guerra foi, na Alemanha, mais do que em qualquer outra parte, um tempo de desespero econômico e de guerra civil. Condições, tanto internas como internacionais, empurravam imperiosamente o país para o caminho do socialismo. Cada passo da socialdemocracia punha a nu a sua degradação e a sua impotência, a essência reacionária de sua política, a corrupção de seus chefes. Que condições, então, ainda são necessárias para o crescimento do Partido Comunista? Entretanto, o comunismo alemão, depois dos primeiros anos de triunfos significativos, entrou numa era de vacilações, de ziguezagues, de oportunismos e aventureirismos alternados. A burocracia centrista enfraqueceu sistematicamente a vanguarda proletária, impedindo-a de arrastar a classe atrás de si. Arrebatou, com isso, ao proletariado de conjunto, a possibilidade de arrastar as massas oprimidas da pequena burguesia. A responsabilidade direta e imediata perante a vanguarda proletária pelo crescimento do fascismo é da burocracia stalinista.