Gestações não planejadas e a luta por educação sexual, métodos contraceptivos e aborto legal, público, gratuito e para todos
“Depois de me informar sobre as pílulas anticoncepcionais, que já fazia uso há cerca de 10 anos, decidi trocar de método contraceptivo, interrompendo o uso da pílula. Fiz pesquisas sobre outros métodos contraceptivos, estava decidida a colocar o DIU do cobre pelo SUS. Manifestei essa decisão na consulta com a ginecologista da minha UBS, que me orientou a agendar a entrevista de planejamento familiar. Entre a janela de tempo da orientação e do agendamento da entrevista, engravidei.”
O trecho acima é um relato da minha experiência pessoal, mas também é a realidade de muitas mulheres e adolescentes no Brasil que, sem conhecimento adequado sobre métodos contraceptivos, educação sexual, planejamento reprodutivo/familiar e cuidados no período de transição nas trocas de métodos, têm gestações não planejadas.
Uma pesquisa recente da Bayer em parceria com a Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) e IPEC (Inteligência em Pesquisa e Consultoria) apontou que 62% das mulheres internautas brasileiras já tiveram ao menos uma gravidez não planejada.[i]
Os dados apontam que esse número aumentou durante a pandemia, uma vez que em 2020 esse dado era de 55%. O atendimento básico de saúde foi sobrecarregado com as demandas da pandemia, as consultas tornaram-se mais espaçadas ou inviabilizadas, além da redução da quantidade de profissionais e serviços oferecidos para atendimento de rotina. O Conselho Federal de Medicina aponta que quase 30 milhões de procedimentos médicos em ambulatórios do SUS deixaram de ser ofertados durante a pandemia. A variação de médicos obstetras e ginecologistas foi de -32% e as ultrassons obstétricas tiveram variação de -16%.[ii] Uma pesquisa realizada pelo IPEC a pedido da Pfizer ilustra o problema por outro lado, 47% das mulheres entrevistadas deixaram de ir ao ginecologista em 2021 e 62% não foram em 2020.[iii]
Dizer que a pandemia sobrecarregou o sistema público de saúde reduzindo a oferta de serviços e profissionais para atendimentos de rotina é somente uma parte da equação, também há que considerar os de cortes e sucateamento dos investimentos na saúde pública em geral e, em se tratando de gestações não planejadas, em particular, somam-se ainda as relações da sociedade baseada na propriedade privada, na moral religiosa e no machismo que aliena a todos de seus corpos e do direito pleno de decidir sobre ele.
Educação sexual para decidir
Uma gestação não planejada não começa na troca de métodos contraceptivos, pode e geralmente está muito antes de seu uso. Até que um jovem ou uma jovem tenha relações sexuais muitas transformações já ocorreram em seu corpo. Através do período da puberdade o corpo da criança começa a sofrer transformações estruturais, fisiológicas e hormonais que não são compreendidas e explicadas a ela desde uma perspectiva científica e individualizada.
As desigualdades e até mesmo lacunas no acesso ao conhecimento científico e orientação/informação sobre o próprio corpo, sexualidade e como planejar ou evitar uma gestação tem como resultado que apenas 13% das mulheres entrevistadas pela Ipsos/Organon têm conhecimento pleno sobre planejamento reprodutivo.[iv]
Uma outra pesquisa, da Bayer de 2018, com jovens do sexo feminino de 16 a 25 anos mostrou que 41% das entrevistadas não conversam sobre sexo com seus pais, 33% não tiveram acesso à educação sexual na escola e menos de 20% buscam informações sobre o assunto com um ginecologista.[v] O resultado é que aos 15 anos (9º ano do ensino fundamental) cerca de 27% dos jovens já tiveram suas primeiras relações sexuais[vi] com pouca ou nenhuma informação e, ainda em 2019, 14,7% do total de nascidos vivos no país são filhos de adolescentes, são cerca de 1150 nascimentos de pais adolescentes por dia no Brasil. Os impactos na vida dos adolescentes são diversos.
“A gravidez na adolescência está associada à evasão escolar, maior perpetuação da pobreza gerando impactos pessoais e sociais. Na esfera da saúde, “a gravidez precoce acarreta inúmeras consequências para a adolescente e o recém-nascido. As complicações gestacionais e no parto representam a principal causa de morte entre meninas de 15 a 19 anos mundialmente, pois existe maior risco de eclâmpsia, endometrite puerperal, infecções sistêmicas e prematuridade, segundo a Organização Mundial da Saúde. Ainda há consequências sociais e econômicas como rejeição ou violência e interrupção dos estudos, comprometendo o futuro dessas jovens”, explica a médica.”[vii]
O espaço adequado para a aquisição de conhecimento científico sobre o próprio corpo e sexualidade deveria ser a escola, contudo, o conteúdo curricular, que já era limitado para questões de gênero, sexo e sexualidade, foi ainda mais prejudicado com a BNCC (Base Nacional Curricular Comum) que é a última etapa da aplicação da Reforma do Ensino Médio e já vigora em todas as escolas do país. Segundo documento do Ministério da Educação sobre a BNCC, em “Ciências”, na unidade temática Vida e Evolução
“Nos anos iniciais, pretende-se que, em continuidade às abordagens na Educação Infantil, as crianças ampliem os seus conhecimentos e apreço pelo seu corpo, identifiquem os cuidados necessários para a manutenção da saúde e integridade do organismo e desenvolvam atitudes de respeito e acolhimento pelas diferenças individuais, tanto no que diz respeito à diversidade étnico-cultural quanto em relação à inclusão de alunos da educação especial. Nos anos finais, são abordados também temas relacionados à reprodução e à sexualidade humana, assuntos de grande interesse e relevância social nessa faixa etária, assim como são relevantes, também, o conhecimento das condições de saúde, do saneamento básico, da qualidade do ar e das condições nutricionais da população brasileira.” BNCC, Ministério da Educação, pág. 322.[viii]
Em contato com uma camarada nossa que é professora de biologia na rede municipal de São Paulo, para os anos finais do ensino fundamental, ela me explicou que os temas relacionados a reprodução e a sexualidade humana previstos no currículo atual são aparelhos reprodutivos, aparelhos externos, internos e como funcionam; hormônios que atuam no aparecimento das características sexuais secundárias na puberdade; métodos contraceptivos existentes, de barreira e irreversíveis, e a eficácia de cada um deles; as ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis) e sua prevenção. Como pode-se observar a quantidade de temas é bem vasta e com a Reforma do Ensino Médio, não há carga horária suficiente para tratar desses temas com a profundidade necessária.
Ao mesmo tempo, a Educação Sexual não trata apenas da “reprodução” e como evitar infecções, mas também de gênero e sexualidade, daí a necessidade de temas como emoções, masturbação, pornografia, violência, aborto, planejamento familiar, opressões de gênero, identidade e sexualidade, atendimento básico de saúde e etc.
Além disso, começar a tratar de assuntos da educação sexual apenas nos “anos iniciais do ensino fundamental” é muito tarde. Assunto como esse são pertinentes desde as fraldas, por exemplo, com orientações aos pais, cuidadores, professores para ensinarem bebês e crianças como nomear corretamente suas partes intimas, instruções sobre quem pode tocar e em que contextos, e dar abertura e orientação para que essas crianças saibam identificar e falar sobre violações sobre seu corpo.
Como dissemos a escola deveria ser o espaço adequado para adquirir conhecimento científico, informação e orientação sobre corpo, sexualidade e sexo, proporcionando autonomia e visão crítica a crianças, jovens e adolescentes sobre seu próprio corpo. E devemos lutar para que em todas as escolas públicas seja implementado na grade curricular, adequada para cada idade e com amplo debate a disciplina de educação sexual nas escolas, reafirmando a laicidade do Estado, combatendo o conservadorismo científico e valorizando a escola como espaço de socialização de conhecimento.
Ao mesmo tempo, também temos que compreender que o problema extravasa os muros da escola. Não temos ilusões de que com a implementação da educação sexual como disciplina nas grades curriculares das escolas públicas do país o problema estará resolvido. Não será a educação a transformar a realidade de milhões de crianças, jovens e adolescentes violentados todos os pelo machismo que lhes impõe uma sexualização precoce, normalização de violências e gestações como sendo a única perspectiva de algum futuro; pelas opressões sexuais que lhes censura e espreme sua sexualidade para caber dentro das caixas padronizadas e úteis para o sistema de exploração baseado na propriedade privada dos grandes meios de produção e reprodução da vida material.
O enfrentamento passa pela luta em defesa da educação sexual, mas não termina aí. Nesse percurso, enfrenta-se com o próprio capitalismo, esse sistema podre, que é reacionário em toda linha, que cerceia o direito de escolha sobre o próprio corpo e sexualidade e pune severamente aqueles que ousam subverter e ameaçar sua existência. Para uma sexualidade e identidades verdadeiramente livres, para a abolição das opressões de gênero é preciso um enfrentamento de classe para pôr abaixo o capitalismo.
Contraceptivos para não abortar
Se do ponto de vista científico e escolar há enormes defasagens para o conhecer do próprio corpo e sexualidade, do ponto de vista da saúde individualizada, as coisas não são melhores.
É muito comum que mulheres ou pessoas com capacidade de ovular já cheguem no ginecologista após as primeiras relações sexuais e já tomando pílulas anticoncepcionais por conta própria, indicação de algum familiar, amigo ou da internet. Muitas vezes o uso da pílula se dá para “regular o ciclo menstrual”, “controlar efeitos da TPM” e etc. A prática médica sem evidência científica ou desatualizada contribui para esse senso comum uma vez que normalmente não são apresentados outros métodos contraceptivos além da pílula e um estudo de cada caso para aliviar, reduzir e mesmo erradicar os problemas relacionados ao ciclo menstrual, além de não encontrar as verdadeiras causas dos problemas levados ao consultório. A pílula é ofertada como primeira opção para resolver todos os problemas hormonais, mas isso está longe de ser verdade.
“A pílula interrompe a ovulação e isso é uma coisa ótima se você não quer um bebê, contudo, seu mecanismo de ação é DESLIGAR a comunicação entre cérebro e ovários, o que te faz parar de produzir seus próprios hormônios. Mulheres e homens produzem hormônios para terem saúde e não exclusivamente para deixarem descendentes no mundo. Desligar um sistema inteiro jamais será a solução. Pode até remediar a queixa, mas não vai curá-la. É como um curativo, porém pior, já que o curativo tampa a ferida para o corpo se recuperar e a pílula impede que você olhe para o problema e lide ativamente com ele.” – Samyra Coutrim, ginecologista natural[ix]
No caso acima, a ginecologista relata que a paciente tomou anticoncepcionais por 15 anos para reduzir as cólicas, mas quando parou de tomar para engravidar, notou que não houve tratamento, as cólicas continuaram ali, só que mascaradas pela interrupção da ovulação. O problema nunca foi estudado e tratado, por mais de uma década.
Há diversos efeitos colaterais na utilização da pílula anticoncepcional como enjoo, vomito, dor de cabeça, cansaço, ganho de peso, acne, manchas na pele, mudanças de humor, redução da libido, quadros psicológicos graves e o desenvolvimento de doenças como trombose, AVC, infarto e embolia pulmonar, em alguns desses casos, quando há combinação de outros fatores como tabagismo, hipertensão e diabetes. As diversas contraindicações devem ser estudadas caso a caso para avaliar os riscos e verificar um tipo de contraceptivo adequado para cada pessoa. Há casos em que a pílula pode ser utilizada como aliada para controlar os sintomas e efeitos da endometriose, que acomete cerca de oito milhões de brasileiras, segundo o Ministério da Saúde.[x] Ainda assim, como não há cura para a doença, é possível amenizar e prevenir a doença com práticas naturais e não dependentes das pílulas. As intervenções não precisam ser necessariamente ou estritamente farmacológicas. [xi] Para um tratamento adequado é preciso o estudo de cada caso e o conhecimento das causas das queixas levadas pelos pacientes ao consultório e não uma recomendação compulsória de anticoncepcional para todos os casos. Há diversos outros métodos que devem ser oferecidos e testados por cada pessoa para uma avaliação clínica e individual da adaptação, dos efeitos e dos benefícios de cada método.
O planejamento familiar ou reprodutivo garantido ao usuário do SUS através da Lei 9.263/1996 trata “dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos de homens e mulheres adultos, jovens e adolescentes com vida sexual com ou sem parceiros fixos, ofertando métodos contraceptivos eficientes e seguros.”
Os métodos anticoncepcionais hormonais ofertados no SUS através das UBSs são os injetáveis com aplicação mensal ou trimestral; comprimidos de uso diário; pílula de emergência ou pílula do dia seguinte, em casos de rompimento da camisinha, relação sexual desprotegida, estupro ou esquecimento da pílula diária.
Em relação aos métodos de longo prazo, há o DIU de cobre (Dispositivo intra-uterino) opção não hormonal; o implante subdérmico (hormonal e com duração de até três anos) e os métodos cirúrgicos como a laqueadura e a vasectomia. Para os dois últimos, é requisito que a mulher ou homem tenha 25 anos ou dois filhos vivos e um período de 60 dias entre a manifestação do desejo e o ato cirúrgico[xii] e, em especial no caso da mulher casada, há necessidade do consentimento do marido.[xiii] Vemos aqui um dos obstáculos para o pleno direito ao próprio corpo baseado na opressão machista.
Contudo a oferta de métodos contraceptivos, principalmente os de longa duração, é desigual e falha. Para conseguir utilizar o DIU no SUS é necessário encontrar a UBS mais próxima da residência que tenha a oferta do serviço, participar da entrevista de planejamento familiar, que é indicada pelo ginecologista mesmo não sendo obrigatória como aconteceu no meu caso particular, marcar a consulta ginecológica. Na consulta é necessário apresentar uma série de exames, sendo o principal o preventivo, conhecido como Papanicolau.
“Se não tiver nenhuma contraindicação o médico prepara a mulher e pede os exames pertinentes, no caso a avaliação do ambiente vaginal. Você faz o papanicolau, e a pessoa estando apta pode agendar a colocação’. De acordo com os médicos, se a paciente tiver um exame papanicolau feito em menos de um ano, pode ser o suficiente para marcar a inserção do DIU.”[xiv]
Só aí se agenda a consulta para a implantação do DIU que deverá ter retorno dentro de um mês para verificar a adaptação. Todo esse processo pode e geralmente leva meses, dificultando o acesso ao método de longo prazo que é combinado com a falta de orientação imediata sobre a transição de um método para outro e como realizá-la. Apesar de ser um procedimento simples, podendo ser realizado no próprio consultório da UBS, há outros obstáculos, como a falta de treinamento dos médicos que trabalham na atenção básica e incentivo à capacitação, bem como a falta de material necessário nas UBS.[xv] Esses fatores estruturais dificultam o acesso ao método, prolongando a espera, levando a desistências ou a procura, para quem pode pagar, do serviço no sistema privado. E como todo método, há uma fase de adaptação ou mesmo de rejeição, com mudanças que podem ser desconfortáveis, nesses casos, a retirada do DIU não ocorre de maneira imediata, pelos problemas que já citamos e não por alguma dificuldade específica desse método, fazendo com que muitas pessoas desistam ou se sintam inseguras por falta das informações das alterações iniciais que a adaptação ao método não hormonal pode acarretar.
Já no caso do implante subdérmico nos deparamos com a baixíssima oferta, concentrada, principalmente, em grandes capitais, no sistema público e majoritariamente vendido pelo setor privado.
No caso da laqueadura encontra-se ainda mais resistência de profissionais e da sociedade, dificultando e inviabilizando o acesso ao método, mesmo sendo garantido pela lei de planejamento familiar. O problema ocorre tanto na rede pública como particular, onde profissionais se recusam a realizar o procedimento, e têm autonomia para se recusar a realizá-lo prevista pelo Conselho Federal de Medicina, desde que indique profissional que realize – o que na prática não acontece. A recusa ocorre principalmente quando pessoas mulheres maiores de 25 anos não têm filhos – uma postura machista e que vê o corpo com capacidade gestacional apenas como reprodutor. No caso dos homens, a vasectomia é muito mais rápida e aceita, e o procedimento geralmente não encontra barreiras para ser realizado.[xvi]
Há ainda obstáculos religiosos, hospitais conveniados com o SUS, filantrópicos, mantidos por entidades religiosas, se recusam a oferecer procedimentos de longa duração, explicitamente por “motivo religioso”.
“A BBC News Brasil fez o teste: ligou para o Santa Marcelina perguntando se poderia agendar a cirurgia e foi informada de que isso não seria possível. Ao perguntar o motivo, recebeu a informação de que se trata de uma entidade filantrópica, controlada por freiras. A reportagem perguntou à instituição se o motivo, então, seria religioso, e a resposta foi “sim”. Procurada por e-mail, a assessoria de imprensa do Santa Marcelina disse que não comentaria o assunto e disse que há outros hospitais na cidade de São Paulo que fazem o procedimento.”[xvii]
Uma contradição flagrante no Brasil é que somos um país em que mais de 80% das mulheres usam anticoncepcionais e mesmo assim a taxa de gestações não planejadas ultrapassa 60%. Segundo a pesquisadora Carolina Vieira, em entrevista à BBC, isso se explica pela falta de acesso aos métodos de longa duração, apenas 2% utilizam o DIU ou implante.
“Cada gravidez não programada custa R$ 2.293 ao país, só considerando gastos com pré-natal e nascimento, conforme Vieira. ‘Isso dá R$ 4,1 bilhões ao ano no Orçamento [Dados de 2018]. E esse número não inclui escola e abrigo, caso a mãe abandone a criança, nem gastos com complicações decorrentes de abortos clandestinos.’ Além disso, as gestações não planejadas têm consequências sociais graves – mortes de mulheres em abortos clandestinos, abandono de bebês e empobrecimento das famílias.”
A alta taxa de gestações não planejadas no Brasil também pode ser explicada pela maior responsabilização e obrigação, geralmente das mulheres, no uso correto e disciplinado e da compra do anticoncepcional, uma vez que diversas UBSs não oferecem outros métodos além da camisinha feminina e masculina. Essa obrigação e responsabilização individual para as mulheres sobre o planejamento reprodutivo é mais uma sobrecarga frente às inúmeras exigências das duplas e triplas jornadas e é totalmente passível de falhas, reduzindo a eficácia do contraceptivo.
A desobrigação masculina sobre o planejamento reprodutivo é gritante, só existe um método contraceptivo de curta duração (a camisinha) e o de longa duração (vasectomia) disponíveis no sistema público de saúde.
Mas existem outras opções como anticoncepcional em gel (Vasalgel), opção não hormonal, que bloqueia a passagem de espermatozoide por até 10 anos e que pode ser revertido; pílula anticoncepcional (DMAU) que reduz a quantidade de testosterona, interferindo na fertilidade masculina temporariamente, mas que não está disponível devido a efeitos colaterais há muito conhecido pelas mulheres como aumento de acne, mudanças de humor, redução da libido; injeção anticoncepcional (RISUG) que bloqueia a ejaculação e, portanto, a liberação de espermatozoides (o que não impede o orgasmo) e tem durabilidade de 10 a 15 anos, é também um procedimento reversível.[xviii]
Apesar de todas as opções já terem sido testadas e possuírem eficácia comprovada os métodos contraceptivos masculinos ainda não estão disponíveis ou custam fortunas, impedindo sua popularização. Além disso, há pouco conhecimento sobre a existência desses métodos e nenhuma pressão para que eles sejam aprovados por órgãos governamentais e distribuídos gratuitamente no sistema público de saúde, assim ocorre a desobrigação masculina no planejamento familiar e reprodutivo, sobrecarregando cada mulher individualmente com mais essa tarefa. É claro que as falhas podem acontecer no acompanhamento do ciclo natural, no uso contínuo da pílula e da camisinha, até que seja possível um método de longa duração. A desobrigação masculina e a maior responsabilização da mulher são, em geral, perpetuadas em caso de uma gestação não planejada, como discutiremos posteriormente.
A possibilidade de evitar a contração e disseminação de infecções sexualmente transmissíveis e de separar o sexo por prazer do sexo reprodutivo, através dos métodos contraceptivos hormonais e não hormonais, reversíveis ou não reversíveis, representaram um progresso da ciência sobre a inevitabilidade da natureza. Ao mesmo tempo, a apropriação desses métodos pela grande indústria capitalista relativiza esse progresso e o converte em seu contrário, em retrocesso, uma vez mantém seus lucros e concentração de capital através da escravização dos nossos corpos, órgãos reprodutores, fertilidade, reprodução, sexo e sexualidade, principalmente, aos métodos hormonais de uso diário.
É urgente que toda a pessoa que queira um método contraceptivo com o objetivo de evitar uma gestação ou de realizar um tratamento receba conhecimento científico, informação e orientação adequada sobre as possibilidades, atendimento individualizado e estudo de caso, acompanhamento da adaptação ou rejeição do método, uma visão completa sobre saúde com incorporação de métodos não farmacológicos. Para isso é necessário todo o investimento necessário na saúde pública, para a ampliação dos serviços ofertados para todas as pessoas, contratação de profissionais, melhoria e ampliação dos espaços de atendimento, recursos para modernização e insumos. Além de investimentos em pesquisa e ciência para atualização da prática médica.
Ao mesmo tempo, estatizar todo o sistema de saúde – planos, laboratórios e hospitais – quebrar a patente de todos os remédios e, neste caso, os contraceptivos, é fundamental para a planificação da saúde orientada ao atendimento das nossas necessidades e não do lucro da indústria farmacêutica e grandes grupos capitalistas que atuam na saúde.
Aborto legal, gratuito e para todos para não morrer
Gestações não planejadas podem se converter em gestações desejadas ou não desejadas. Para o primeiro caso, uma continuidade desse artigo tratará do atendimento básico pré-natal. Para o segundo caso, a morte materna é uma consequência para uma mulher a cada dois dias, decorrente de cerca de 1 milhão de abortos induzidos realizados no país, segundo dados do próprio Ministério da Saúde[xix]; complicações de saúde geradas por abortos incompletos como as curetagens e aspirações, como foi o caso de 80.948 mil procedimentos realizados apenas no primeiro semestre de 2020[xx]; ou abandono, realidade de mais de 30 mil crianças acolhidas em abrigos[xxi].
O aborto legal restrito (gestação decorrente de violência sexual; aborto quando há risco de morte materna; gestação de feto anencéfalo)[xxii] realizado pelo SUS de janeiro a junho de 2020 representou apenas 1024 procedimentos. Contudo, os dados de violência sexual são muito mais elevados que isso.
“A gente calcula que aproximadamente 6% das mulheres que sofrem violência sexual em idade reprodutiva e não usam método contraceptivo vão engravidar em decorrência do estupro. Então o número de gestações decorrentes de estupro é muito maior do que esses 1 mil abortos legais ocorridos no 1º semestre. O que quer dizer que as mulheres simplesmente não estão conseguindo encontrar uma resposta adequada do estado”, explica Drezett.”[xxiii]
O aborto legal, público, gratuito e para todos com capacidade de gestar é um direito urgente e necessário para evitar mortes e complicações decorrentes de abortos clandestinos. Também é urgente e necessário para reduzir e mesmo erradicar a quantidade de bebês, crianças e adolescentes em situação de abandono ou vulnerabilidade.
O aborto legal público, gratuito e para todos não é apenas uma reivindicação sobre o direito de decidir sobre nossos corpos. Do ponto de vista marxista, para além da decisão e liberdade individual, há uma questão de classe. As mulheres e pessoas com capacidade de gestar trabalhadoras, exploradas, pobres morrem por realizarem abortos clandestinos. Se não morrem, são presas e condenadas, ou passam anos com problemas decorrentes dos abortos incompletos. Enquanto isso, quem pode pagar, compra os métodos contraceptivos que quiser, realiza quantos abortos quiser e até mesmo mantém quantas gestações quiser, pois a luta pela sobrevivência individual não está colocada para essas pessoas como está para as pessoas pobres. O direito ao aborto legal público, gratuito e para todos assim é uma reivindicação de classe, pelas vidas de milhões de trabalhadoras no Brasil e no mundo. Essa reivindicação democrática ganha contornos revolucionários em todo o mundo pois se enfrenta diretamente com o controle opressor e machista do sistema capitalista sobre nossos corpos.
Na luta pelo aborto legal, público e gratuito para todos nos enfrentamos com esse sistema de exploração e com a ideologia machista que ele aprofunda e apontamos uma saída socialista, uma perspectiva de luta que não se limita à sociedade capitalista, mas que propõe uma superação radical desse modo de produção que visa o lucro, em favor de uma sociedade que planeje todos os aspectos da produção da vida material e de sua reprodução, sob controle dos trabalhadores e das trabalhadoras, para satisfazer nossas necessidades e aumentar nossa liberdade humana real, de alcançar uma harmonia com as leis da natureza.
“Em consequência, liberdade da vontade nada mais é que a capacidade de decidir com conhecimento de causa. Portanto, quanto mais livre o juízo de um ser humano em relação a uma determinada questão, maior será a necessidade de que esse juízo seja determinado, ao passo que a incerteza baseada no desconhecimento, que aparentemente escolhe o modo arbitrário entre muitas possibilidades diferentes e contraditórias de decisão, comprova, justamente por isso, sua falta de liberdade, seu ser dominado exatamente pelos objetivos que ela deveria dominar. A liberdade consiste, portanto, no domínio sobre nós mesmos e sobre a natureza exterior baseado no conhecimento das necessidades naturais, desse modo, é necessariamente um produto do desenvolvimento histórico.” (Friedrich Engels, Anti-Dühring, Boitempo, página 146).
Uma sociedade socialista será capaz de permitir a todo individuo alcançar a plena liberdade de uma cultura verdadeiramente humana. Apontamos essa luta como uma perspectiva indissociável da luta pela legalização do aborto, pois compreendemos que devemos nos mobilizar desde já pela superação do sistema capitalista de produção.
Como vimos, a luta pelo aborto legal, público, gratuito e para todos não está desconectada da batalha pela educação sexual e dos métodos contraceptivos. Esse tripé inseparável é um importante norte para o Movimento Mulheres Pelo Socialismo (MPS). Nesse 8M participe dos blocos do MPS nas ruas e se engaje na construção do Encontro Nacional do Mulheres Pelo Socialismo, que será realizado no dia 09 de abril para discutir e fazer avançar essas e outras pautas.
Num próximo artigo discutirei o atendimento pré-natal, principalmente no sistema público de saúde, suas diferenças locais, os tipos de atendimento, etc. Unindo meu relato pessoal com pesquisas recentes sobre o tema e com reivindicações transitórias baseadas no marxismo e na luta pelo socialismo para a emancipação das mulheres e de toda a Humanidade da sociedade de classes e de suas opressões.
*Lucy Dias é militante da Esquerda Marxista, membro da Coordenação Nacional da Liberdade e Luta, formada em Ciências Econômicas pela PUC-SP e mãe de primeira viagem. Se quiser discutir os assuntos tratados neste artigo diretamente com a autora entre em contato pelo e-mail dlucy.1917@gmail.com ou (11) 98263-3089.
Referências:
[i] Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/Feminismo/noticia/2021/12/pesquisa-mostra-que-62-das-mulheres-ja-tiveram-gravidez-nao-planejada-no-brasil.html; Acesso em 21/01/22
[ii] Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/pandemia-derruba-quase-30-milhoes-de-procedimentos-medicos-em-ambulatorios-do-sus/; Acesso em 21/01/22
[iii] Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/09/28/pandemia-47-mulheres-deixam-de-fazer-exame-que-detecta-cancer-de-mama.htm; Acesso em 21/02/22
[iv] Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/bem-viver/2021/10/05/interna_bem_viver,1311512/pesquisa-so-13-das-mulheres-tem-conhecimento-de-metodos-contraceptivos.shtml; Acesso em 21/02/22
[v] Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/pesquisa-revela-que-41-das-jovens-nao-conversam-sobre-sexo-com-pais-22467395; Acesso em 21/02/22
[vi] Disponível em: https://g1.globo.com/profissao-reporter/noticia/2019/06/27/educacao-sexual-ainda-e-tabu-no-brasil-e-adolescentes-sofrem-com-a-falta-de-informacao.ghtml; Acesso em 21/02/22
[vii] Disponível em: https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/1299-gestacao-na-adolescencia-estudo-inedito-revela-queda-de-37-nos-ultimos-20-anos; Acesso em 21/02/22
[viii] Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=79601-anexo-texto-bncc-reexportado-pdf-2&category_slug=dezembro-2017-pdf&Itemid=30192; Acesso em 21/02/22
[ix] Disponível em: https://www.instagram.com/p/CWLVugLFarH/; Acesso em 22/01/22
[x] Disponível em: https://blog.austahospital.com.br/endometriose-atinge-8-milhoes-de-mulheres-no-brasil/ Acesso em: 10/02/22
[xi] Disponível em: https://clinicagera.com.br/endometriose-tratamento-natural Acesso em 10/02/22
[xii] Disponível em: https://semsa.manaus.am.gov.br/servico_acoes_saude/planejamento-reprodutivo/#:~:text=O%20planejamento%20reprodutivo%20chamado%20tamb%C3%A9m,ofertando%20m%C3%A9todos%20contraceptivos%20eficientes%20e; Acesso em 22/01/22
[xiii][xiii] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44549368; Acesso em 22/01/22
[xiv] Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/2018/10/26/diu-no-sus-5-passos-para-conseguir-colocar-o-dispositivo-de-graca.ghtml; Acesso em 22/01/22
[xv] Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44549368; Acesso em 22/01/22
[xvi] Disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/celina/por-que-tao-dificil-fazer-uma-laqueadura-nas-redes-publica-particular-de-saude-mulheres-medicos-debatem-23577251; Acesso em 22/01/22
[xvii] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44549368;
[xviii] Disponível em: https://www.tuasaude.com/anticoncepcional-masculino/ Acesso em 22/01/22
[xix] Disponível em: http://www.cofen.gov.br/uma-mulher-morre-a-cada-2-dias-por-causa-do-aborto-inseguro-diz-ministerio-da-saude_64714.html; Acesso em 22/01/22
[xx] Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/08/20/sus-fez-809-mil-procedimentos-apos-abortos-malsucedidos-e-1024-interrupcoes-de-gravidez-previstas-em-lei-no-1o-semestre-de-2020.ghtml; Acesso em 21/01/22
[xxi] Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-10/brasil-tem-30-mil-criancas-acolhidas-e-5-mil-aptas-para-adocao#:~:text=Publicado%20em%2011%2F10%2F2020,do%20Conselho%20Nacional%20de%20Justi%C3%A7a; Acesso em 21/01/22
[xxii] Disponível em: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/atencao-mulher/principais-questoes-sobre-aborto-legal/; Acesso em 05/03/22
[xxiii] Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/08/20/sus-fez-809-mil-procedimentos-apos-abortos-malsucedidos-e-1024-interrupcoes-de-gravidez-previstas-em-lei-no-1o-semestre-de-2020.ghtml; 21/01/22