Homenagear Krupskaya é compreender a escola que os marxistas defendem
Estamos no interlúdio entre o nascimento e morte de Nadezhda Konstantinovna Krupskaya. Comemoramos 152 anos de sua chegada na Rússia czarista, relembramos os 82 anos da sua morte completados neste 27 de fevereiro, na União Soviética já burocratizada pelo stalinismo.
A obra de Krupskaya, produzida durante a Revolução Russa, primeira experiência do movimento operário ao tomar o poder por meio de uma revolução socialista, contribuiu muito na construção de uma pedagogia de fato transformadora, socialista. No momento que vivemos no Brasil, quando Paulo Freire é demonizado pela direita mais reacionária e ovacionado pela dita esquerda (leia nossa posição sobre Paulo Freire), é muito importante perceber que falar sobre uma “nova escola” não é novidade.
Não podemos negar que a principal referência de Krupskaya é a de ser esposa de Lênin. Os marxistas não se confundem com as “esquerdas” majoritárias, que a tomam por feminista. Aliás, como Krupskaya, Lênin, Rosa Luxemburgo e demais comunistas se depararam com o feminismo desde a sua origem, teriam “se retorcido no túmulo” ao ver uma comunista do porte de Krupskaya ser reduzida a uma feminista.
No livro “A Construção da Pedagogia Socialista”, publicado pela Expressão Popular e já muito bem analisado nesse artigo, há um texto sobre as mulheres trabalhadoras, que, aliás, é o primeiro texto da coletânea. Escrito em 1899 para uma brochura chamada “A mulher operária”, é uma tentativa de diálogo com a mulher camponesa, que por conta do trabalho é forçada a deixar a educação mais básica, a da manutenção da vida, com as mulheres mais velhas, debilitadas, ou com crianças mais velhas. Choca quando explica que a situação daqueles filhos é serem alimentados com mingau azedo, quaisquer verduras, pão preto amassado e que são sacudidos até perderem a consciência, numa casa sufocante. Conta que não era raro uma criança de seis, oito anos, deixar o bebê cair, se queimar.
Isso acontece porque na Rússia daquela época os trabalhadores não tinham nenhuma noção sobre os cuidados que se deve ter com um corpo humano em desenvolvimento, muito menos tinham as condições para realizarem esse cuidado. É por isso que metade das crianças morriam nas aldeias antes de completarem cinco anos.
Aqui Krupskaya vai apontar problemas da educação na Rússia czarista que se assemelham em muito com a história recente do campo brasileiro. Explica que não havia escolas e, quando havia, os filhos dos camponeses não podiam ir, ou por impossibilidade de ter uma roupa (!), ou pelo trabalho já exercido pelas crianças, seja na produção agrícola, ou nas tarefas domésticas. Ainda quando conseguem frequentar a escola, os professores são proibidos de ir além da alfabetização. SegueAqui aparece a citação talvez mais famosa de Nadezhda:
“É preferível para o governo manter o povo na ignorância e, dessa forma, nas escolas é proibido falar às crianças e dar-lhes livros para ler sobre como outros povos conquistaram a sua liberdade, quais são suas leis e regulamentos, proíbem explicar porque algumas nações têm determinadas leis, […] Em poucas palavras, nas escolas é proibido dizer a verdade, e os professores só devem ensinar às crianças a reverenciar Deus e os czares.”
Um trecho menos conhecido, mas ainda muito atual é o que segue:
“Dessa forma, a criança sai da escola sabendo pouco, do mesmo jeito que entrou nela. A própria mãe, geralmente, não é capaz de ensinar nada aos filhos, pois ela também não sabe nada.”
A escola que defendemos só vem com a revolução
É justamente porque o capitalismo não fornece as condições materiais possíveis para a uma vida digna que é impossível pensar em uma educação para todos enquanto houver capitalismo. A educação sempre corresponde ao grau de desenvolvimento da sociedade. Portanto, não é a escola que vai transformar o mundo. É preciso transformar o mundo para transformar a escola.
“Lutadores podem ser criados na escola socialista, mas no estado capitalista somente em casos excepcionais, pois um lutador deve passar pela dura escola da vida, e a escola socialista embutida no sistema burguês não poderia ser mais que uma planta exótica, uma instituição separada da vida. E como a escola socialista não pode ser, sob o sistema capitalista, uma instituição da vida, no melhor dos casos, ela seria apenas uma experiência educacional interessante.”
A comunista ainda explica que o que tornaria uma escola socialista não é ser liderada por socialistas, mas suas metas corresponderem às necessidades da sociedade socialista. Um jovem que frequentasse uma “escola socialista”, vivendo no capitalismo, rapidamente veria os benefícios dessa educação se minimizando pela pressão da sociedade.
Mas Krupskaya tinha a teoria certa, no momento e lugar certo: estava organizando as tarefas da escola pós revolução. Em 1922, listava quais eram as principais, no primeiro grau de ensino:
“É necessário um método investigativo de abordagem das disciplinas estudadas, que por sua vez coloque em primeiro lugar as ciências naturais e o trabalho. […] Ensinar as crianças nos livros, na ciência, a buscar respostas para as questões que aparecem, dar a ela a consciência de que pode procurar nos livros o que pensou a humanidade sobre esta ou aquela questão. Disso decorre a necessidade de dar grande lugar na escola, mesmo no primeiro grau, ao estudo independente das crianças […] a necessidade de conceder amplo lugar à arte, arte que é próxima, que evoca a emoção coletiva, que desenvolve predisposições sociais.”
De maneira mais objetiva as tarefas são:
- saber ler e escrever;
- familiaridade com uma quantia de fenômenos e técnicas de medição e suas correspondentes grandezas (aritmética e geometria elementar);
- familiaridade com a constituição do corpo humano;
- compreensão elementar da geografia física e matemática;
- noções sobre economia, política e cultura cotidiana da vida da República Soviética;
- noções sobre a vida passada da sociedade humana.
Todos que já passaram por uma escola sabem que ainda hoje não atingimos esses objetivos. Essa é a prova de que, por mais que tentem reformar a escola, isso não é possível no capitalismo. A Reforma do Ensino Médio, por exemplo, vende essa falsa promessa para ocultar a privatização do ensino. A teorização da escola politécnica defendida por Krupskaya prioriza muito a relação com o trabalho, ou seja, com a vida prática da sociedade.
Em um excelente texto escrito em 1933, após a morte de Lênin e, portanto, já na degeneração stalinista da revolução, ela resgata, talvez para dar mais força às suas ideias, tudo o que Marx havia escrito sobre educação. Seja no Manifesto:
“a eliminação do caráter de classe da educação moderna parece a ela [burguesia] o equivalente à eliminação de toda a educação. Para a grande maioria, a educação pela qual a burguesia chora não é nada mais do que a conversão desta maioria em máquina.”
Konstantinovna lembra que Marx amava as crianças e dizia que o homem deveria se esforçar para, em um nível superior, reproduzir sua essência. No primeiro volume de O Capital, dedica um enorme espaço para tratar do trabalho infantil. O capítulo “A jornada de trabalho” tem mais de vinte exemplos da exploração ultrajante que as crianças sofriam nas fábricas. Ao passo que o trabalho deixa de ser expropriado pela burguesia e passa a ser controlado pela classe operária para produzir socialmente para todos, a pedagogia socialista deve proporcionar às crianças uma grande quantidade de conhecimento e aprender a trabalhar:
“Aquele que passa metade do dia na escola, sempre fica lépido e quase sempre pronto e capaz para aprender. […] O menino que desde o início da manhã fica sentado na escola, especialmente no calor do verão, em qualquer caso, não pode competir com o outro rapaz, que vem jovial e alegre do seu trabalho. […] A educação do futuro […] unirá o trabalho produtivo com o ensino e a ginástica […] único método de produzir seres humanos desenvolvidos em todas as dimensões” – O capital, vol. I, tomo II
Marx reconhecia que, apesar de repugnante, o advento do trabalho na fábrica possibilitou uma autonomia aos jovens e uma relação mais saudável entre homens e mulheres. No texto “Deve-se ensinar ‘coisas de mulher’ aos meninos?”, Krupskaya também demonstra a preocupação com a eliminação do machismo na sociedade socialista:
“A escola livre luta contra todos os preconceitos que arruínam a vida das pessoas. O preconceito de que a tarefa doméstica é digna apenas de seres com necessidades menores abala a relação entre homens e mulheres, introduzindo nela um princípio de desigualdade. Tal preconceito não martirizou apenas uma mulher, não gerou alienação e discórdia em apenas uma família.
[…] Quem já observou crianças sabe que na primeira infância os meninos se dispõem com tanto gosto quanto as meninas a ajudar a mãe a cozinhar, a lavar a louça e a realizar quaisquer tarefas domésticas. Isso parece tão interessante! Mas, em geral, desde os primeiros anos começa a haver uma diferenciação no interior da família. As meninas recebem a incumbência de lavar as xícaras, de arrumar a mesa, enquanto para os meninos dizem: “O que você está fazendo aqui na cozinha? Por acaso isso é coisa de homem?”. As meninas são presenteadas com bonecas e louças; os meninos, com trens e soldadinhos. Na idade escolar, eles já aprenderam em suficiente medida a desprezar “as meninas” e suas tarefas. É verdade que esse desprezo ainda é muito superficial e, se a escola seguir outra abordagem, essa depreciação por “coisas de mulher” rapidamente desaparecerá. Com tais objetivos, é preciso ensinar aos meninos, juntamente com as meninas, a costurar, a fazer crochê, a remendar a roupa branca, ou seja, tudo aquilo sem o qual não se pode viver e cujo desconhecimento torna a pessoa impotente e dependente de outros. Se essa aprendizagem ocorrer como se deve, há razões para pensar que os meninos a realizem com prazer, como se pode observar no exemplo das escolas de Petersburgo (é característico que esse experimento tenha sido realizado em escolas mistas). Sendo assim, é preciso encarregar alternadamente as próprias crianças (sem separação do trabalho entre meninos e meninas) da tarefa de preparar o café da manhã coletivo, de lavar a louça, de arrumar as salas, de limpá-las etc. O desejo de ser útil, de realizar bem a função que lhe foi atribuída, o entusiasmo pelo trabalho farão com que o menino logo se esqueça do seu desdém pelas “coisas de mulher”.”
A morte de Lênin
É curioso ver que, através da coletânea que li, um dos poucos livros que trazem a produção de Krupskaya (aliás, carecemos de biografias, tanto de Lênin, quanto dela), como a menção à Lênin passa a aparecer praticamente após sua morte. Muito provavelmente a causa seja o luto, uma tentativa de transformar a dor da perda em memória, registro histórico. Nos textos antes de 1924 não há menção ao maior líder da revolução russa. Ainda que ele fosse o seu maior companheiro e, por isso, sua maior referência:
“Lênin insistiu na organização de uma reunião partidária. Nessa reunião, foi proposto meu relatório sobre politecnização. As teses preliminares deste eu as mostrei a Ilitch. Ilitch anotou as suas observações nelas e sobrescreveu: ‘Privado. Esboço. Não divulgar. Eu vou pensar sobre isso mais uma vez ou duas.’”
Fica nítido nos textos sobre ele a gigantesca troca que havia entre os dois. Eles se conheceram em 1894, quando ela começou a participar da “união de luta pela emancipação da classe trabalhadora”, liderada por ele. Depois de duas prisões, casou com Ilitch durante o exílio na Sibéria, em 1898.
“Ilitch não sabia viver de um modo diferente. Ele não era um asceta, ele gostava de patinar no gelo, andar de bicicleta e subir nas montanhas, andar nas caçadas, gostava de música, amava a vida em toda sua beleza multifacetada, gostava dos amigos, amava as pessoas. Todo mundo sabia da sua simplicidade, de sua alegria, do riso contagiante. Mas tudo para ele estava sujeito a uma coisa: a luta por uma vida brilhante para todos, iluminada, próspera, cheia de conteúdo e alegria. Acima de tudo ele gostava de sucessos nesta luta. Sua vida privada se misturava claramente com suas atividades sociais.”
Apesar de não gostar do trabalho administrativo e não se interessar por altos cargos no governo, Krupskaya foi a “alma do Narkompros”, o Comissariado do Povo para Educação, nas palavras de Lunacharsky. Quando esse órgão foi constituído, sob direção dele, ela foi apontada para vice-comissária, mas saiu já no primeiro semestre de 1918. Isso não quer dizer que ela não tenha tido um papel fundamental e não fosse uma excelente marxista. Estava profundamente envolvida com a formulação teórica da política educacional.
É por isso que apesar de não ter se unido à Oposição de Esquerda e ter ficado na Rússia onde era, obviamente, cultuada, assim como Lênin, ela fez duras críticas ao stalinismo. Em 1926, em uma reunião da Oposição Unificada, disse: “Se Vladimir Ilitch estivesse vivo hoje, estaria em uma das prisões de Stalin.” Foi contra sua vontade, que Zinoviev aprovou o embalsamento do corpo de Lênin. Antes da morte, Lênin adicionou um anexo ao seu testamento após Stalin praguejar e insultar Krupskaya por ajudar Trotsky e outros a se comunicarem com ele. Apesar das demandas urgentes da viúva, Stalin e seus apaniguados se recusaram a entregar o Testamento ao Partido.
O estudioso russo Valentin Sakharov sugeriu que o famoso “testamento” de Lênin de 1923, no qual ele recomendava a remoção de Stalin por ser demasiado grosseiro, pode ter sido escrito pela esposa de Lênin, visto que ele já estava demasiado incapacitado naquele momento.
Francamente, é assombroso que Stremlin repita a repugnante calúnia, posta em circulação pela primeira vez pelos stalinistas nos anos 1920, de que a viúva e fiel camarada de Lênin tenha inventado o testamento. Este é mais um exemplo das profundezas a que os “modernos eruditos russos” estão dispostos a mergulhar em suas tentativas repulsivas de restaurar a imagem de Stalin e assim favorecer a Putin, à gang do Kremlin e à oligarquia cujos interesses defendem.
Observemos que o “acadêmico” Sakharov cobre sua retaguarda usando as astutas palavras “pode ter sido”. Essa fuga covarde é o que basta para expor um método desonesto e inescrupuloso. Krupskaya, que dedicou toda a sua vida a Lênin e ao Partido Bolchevique, nunca o trairia em seu leito de morte de uma forma tão vil como insinuado por Sakharov. Mas este último não tem absolutamente nenhum escrúpulo em trair a verdade histórica para os seus próprios e cínicos propósitos.
Nas primeiras edições de suas memórias, Krupskaya descreve honestamente a atitude entusiástica de Lênin para com Trotsky. Em edições posteriores desapareceriam as linhas que aqui reproduzimos na íntegra:
“As calorosas recomendações que nos foram dadas com respeito à ‘pequena águia’ e a primeira conversação sustentada impulsionaram Vladimir Ilyich a examinar com atenção o recém-chegado. Falou muito com ele e saíram juntos para passear.
“Vladimir Ilyich perguntou a Trotsky sobre sua viagem a Poltava para se pôr em contato com O Trabalhador do Sul (que vacilava entre Iskra e seus adversários) e gostou da precisão das respostas de Trotsky; o fato de que este tivesse identificado imediatamente a essência das divergências (…).
“Da Rússia se exigia insistentemente o regresso de Trotsky. Vladimir Ilyich queria que este permanecesse no estrangeiro a fim de aprender e prestar seu concurso ao trabalho de Iskra.
“Plekanov manifestou imediatamente seus receios com relação a Trotsky, no qual via um membro do setor jovem de Iskra (Lênin, Martov e Potrésov), ou seja, a um discípulo de Lênin. Quando Vladimir Ilyich mandou um artigo de Trotsky a Plekanov, este respondeu: ‘A pena de vosso Pero não me agrada’. ‘O estilo’, respondeu Vladimir Ilyich, ‘se adquire; Trotsky é um homem capaz de aprender e nos será muito útil” (Krupskaya, Recordações de Lênin, p. 92. Editorial Fontamara. Barcelona, 1976).
Mas Plekanov sabia que Trotsky apoiaria Lênin e que, portanto, ele ficaria em minoria, e vetou colericamente a proposta.
“Pouco depois”, acrescenta Krupskaya, “Trotsky se foi a Paris e ali começou a avançar e conseguiu um destacável êxito”
Estas linhas da companheira de toda a vida de Lênin são mais significativas se levarmos em consideração que foram escritas em 1930, quando Trotsky já havia sido expulso do Partido, vivia exilado na Turquia e estava totalmente proscrito na União Soviética. O que salvou Krupskaya da cólera de Stalin foi o fato de ser a viúva de Lênin. Mais tarde, a intolerável pressão a obrigaria a inclinar a cabeça e a aceitar passivamente a falsificação da história, embora tenha se negado firmemente a se unir ao coro de glorificação de Stalin.
Nossas tarefas
Como o próprio título desse texto convida, a melhor forma que temos de homenagear os revolucionários é prosseguindo seu legado. Por isso, convido todos a participarem do 2º Seminário em Defesa da Educação Pública, Gratuita e para Todos, organizado pela Liberdade e Luta e pela Esquerda Marxista em 17 de abril. Para se inscrever no seminário você deve preencher o formulário. Construir com nossos pares a luta por uma educação pública, gratuita e para todos que realmente eduque, o que só é possível no socialismo, é assim que fazemos valer a luta de Krupskaya e de todos os revolucionários que dedicaram a vida na luta pelo fim do capitalismo, por uma vida digna para a humanidade.
Fontes:
https://www.marxists.org/portugues/krupskaia/1910/mes/ensinar.htm
A construção da pedagogia socialista, Expressão Popular