Revolução Russa e a educação: a contribuição de Krupskaya

Neste texto apresentamos breve resenha do livro publicado no início de 2017 pela Editora Expressão Popular (1). Neste livro, Luiz de Carlos Freitas e Resoli Salete Caldart organizam textos da revolucionária russa Nadezhda Krupskaya de 1896 a 1938, culminando em um riquíssimo material com respeito aos debates antes, durante e após a revolução de 1917 quanto ao futuro da Educação Soviética.

Nosso texto também tem a intenção de colaborar com a celebração dos 100 anos da revolução, discutindo os principais avanços e perspectivas educacionais que só a maior revolução da história da humanidade poderia promover.

Quanto à estrutura do texto: toda a paginação aqui se refere ao livro supracitado, porém para melhor situar o leitor sempre citamos o texto de Krupskaya seguido da fonte das citações, assim como o ano de sua publicação.

Sobre Krupskaya

Muito conhecida em especial por ter sido a companheira de V. I. Lenin, muitos se esquecem de que Krupskaya teve papel revolucionário muito ativo. Contribuiu com a discussão com respeito à luta das mulheres e, especial, quanto à educação, chegando a presidir Seção científico-pedagógica do Conselho Científico Estatal. Assim, é bastante clara sua influência no Narkompros (Comissariado da Educação), quanto à estruturação da educação socialista destinada a formar o novo ser humano.

Infelizmente, na sua última década de vida aderiu à contrarrevolução stalinista, tornando-se de acordo com Leon Trotsky “uma das figuras mais trágicas da história revolucionária”.  Apesar disso, é inegável sua contribuição na construção de uma pedagogia socialista e de uma nova e efetiva concepção educacional para toda a URSS e para uma sociedade livre das amarras capitalistas.

Escola burguesa e escola socialista

Após a revolução de 1917 se torna necessário organizar e discutir uma nova concepção de educação, que supera a concepção burguesa. Como sabemos, a educação capitalista é uma educação de classe, voltada aos interesses da classe dominante, e que nasce e se massifica inicialmente com o interesse de estabelecer os estados nacionais e padronizar a língua de cada nação: “No Estado burguês – seja uma monarquia ou uma república, não importa – a escola é um instrumento de subjugação intelectual de amplas massas nacionais.” (p. 65 – SOBRE A QUESTÃO DA ESCOLA SOCIALISTA de 1918)

Mas a escola burguesa não subjuga somente intelectualmente. Ela também impõe valores morais, condutas, hábitos e formas de ser. Por exemplo, a busca incessante por dinheiro e a competitividade são apenas exemplos do que este tipo de escola transmite até hoje.

A imposição dos valores supracitados tem uma função bastante específica e é orientada a diferentes setores da população. Krupskaya explica, por exemplo, que a burguesia estrutura uma educação direcionada à pequeno-burguesia, ou camadas médias da população, destinada a formar um corpo técnico-burocrático que administre o Estado burguês e seus negócios (p. 67 – – SOBRE A QUESTÃO DA ESCOLA SOCIALISTA de 1918). Ela também identifica uma política voltada para a extração dos jovens mais talentosos oriundos das camadas proletárias, que serão cooptados pela ideologia burguesa para formar um corpo burocrático capaz de administrar seus negócios e estrutura estatal. Quanto a isso, Krupskaya cita o exemplo de como a burguesia britânica pensava a questão:

A burguesia britânica pensa assim: o objetivo do ensino médio é formar um quadro de criados inteligentes para o Estado Burguês. A classe operária, como tal, composta de operários braçais, não pode educar em massa as suas crianças em escolas que as desacostumem ao trabalho físico; apenas alguns escolhidos podem ingressar na escola média, assim, eles saem de sua classe e entram numa classe privilegiada de funcionários do Estado. Se os mais talentosos, mais dotados deixam o meio operário, isso é mais vantajoso para a burguesia; a classe operária está perdendo seus líderes, fica enfraquecida, despersonalizada, e o quadro de servidores do Estado fica reforçado. Assim soluciona-se a questão do acesso à escola média.” (p. 69 – SOBRE A QUESTÃO DA ESCOLA SOCIALISTA de 1918)

A partir desse trecho é possível ver que a educação para o conjunto da classe trabalhadora, em linhas gerais, continua hoje a mesma do século 19: forma mão de obra barata para a burguesia, ao mesmo tempo que ela cria mecanismos de cooptação e formação dos jovens mais avançados para serem educados em meio burguês, de acordo com os interesses dessa classe. Oras, o que seria o vestibular senão um desses meios de fazerem entrar na classe privilegiada alguns elementos mais dotados intelectualmente da classe trabalhadora?

Assim, para Krupskaya, uma das tarefas da URSS é desenvolver uma educação pública, gratuita e para todos, que conecte a educação teórica em sala de aula com o trabalho produtivo, desde o jardim de infância até o ensino médio. Mas o que isso quer dizer exatamente?

As bases para a construção de uma escola socialista: Marx & Engels

A base para o pensamento educacional de Krupskaya vem primordialmente de Marx & Engels, com contribuições de Lenin que não serão foco aqui.

Em primeiro lugar, para evitar mal-entendidos, a revolucionária russa deixa claro desde o início a seguinte diferenciação: uma coisa é a exposição da criança ao trabalho assalariado, outra bem distinta é a inserção da criança e jovem no trabalho com objetivos educacionais que possibilitem o aprendizado prático e teórico de como a sociedade funciona em seus principais ramos produtivos. Mas deixemos que ela fale por si: “Os socialistas são contra a exploração do trabalho infantil, mas eles, é claro, são a favor do trabalho infantil que está de acordo com as possibilidades da criança, que é multilateral e educa.” (p. 75 – SOBRE A QUESTÃO DA ESCOLA SOCIALISTA de 1918)

Como dito, ela se baseia no que Marx e Engels defenderam com respeito à nova educação, proletária e socialista, a escola do trabalho, para formulação de princípios do que seria uma educação socialista. Ela revela trechos em importantes obras desses revolucionários que, embora não dissertem única e exclusivamente sobre a educação, fornecem bases para o mesmo.

Já no Manifesto do Partido Comunista ela revela que ambos deixam claro que é necessário criar uma sociedade na qual “o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos”. Porém, o que isso exatamente quer dizer? E como isso se relaciona com a educação? Aqui eles atacam as bases da sociedade burguesa, do trabalho alienado, deixando claro que sob o julgo do capital, o desenvolvimento humano em seu conjunto estará sempre comprometido. E só promovendo uma sociedade controlada pelos trabalhadores é que poderemos, de fato, educar o conjunto da classe trabalhadora de acordo com nossos interesses de classe.

Quanto às proposições marxistas diretamente, Marx era contra o trabalho infantil alienado e contra a especialização promovida por essa forma de trabalho, que para ele gerava a idiotização profissional (p. 194-5 – MARX E A EDUCAÇÃO COMUNISTA DA JUVENTUDE de 1933). Mas então o que propunha o autor?

O olhar dialético de Marx para a sociedade o permitiu observar alguns avanços da sociedade capitalista, como o desenvolvimento da maquinaria e da indústria, e como esses criaram as bases para a superação do trabalho idiotizado (alienado) (p. 197-8 – MARX E A EDUCAÇÃO COMUNISTA DA JUVENTUDE de 1933). Em contraposição a esse, Marx propunha o trabalho multilateral, que possibilitaria uma educação multilateral já às crianças e jovens.

Talvez a concepção de escola do trabalho de Marx seja aqui o ponto mais polêmico. Muitos quando se aproximam desta discussão, tendem a vociferar: “Marx defendia o trabalho infantil!” Nada mais falso.

Tanto em “Crítica ao Programa de Gotha”, quanto em sua proposta de resolução ao 1º Congresso da Associação Internacional do Trabalhadores em Genebra, em 1866, o que Marx defendeu, e é base da concepção pedagógica de Krupskaya, foi a unificação da escola e do trabalho. Isso significa para o revolucionário alemão que será saudável à criança estar inserida, sempre com fins pedagógicos, em alguma atividade produtiva e conectada ao trabalho intelectual desenvolvido na escola. Para ele, essa inserção, a depender das possibilidades, deveria se dar desde os 9 anos. Por outro lado, ressaltamos, Marx era categoricamente contra o trabalho infantil, a criança inserida no trabalho alienado, assalariado. Oras, como seria Marx a favor do trabalho infantil alienado, este mesmo que até hoje gera a idiotização pela sua especialização absoluta e contra o qual ele produz crítica voraz no capítulo “Jornada de Trabalho” do livro 1 de “O Capital”?

Em suma, podemos ver, a partir dos escritos de Krupskaya, que Marx defendia uma educação sempre conectada com o trabalho, aproveitando os avanços da indústria, na busca pela formação de uma educação multilateral dos estudantes.

Para além do conteúdo educacional defendido, Krupskaya extrai pensamentos importantes do autor, sobre a defesa da laicidade do ensino e do combate permanente contra a influência do Estado Burguês sobre a escola. Quanto a isso, a revolucionária russa expõe a polêmica de Marx com os lassalianos (socialistas utópicos da época) que compreendiam que a linha política a ser defendida era a de reivindicações dirigidas ao Estado Burguês pela melhoria da educação pública. Marx rejeitou completamente esse ponto de vista, e defendeu uma educação totalmente controlada pelos trabalhadores sem fomentar nenhuma ilusão de que essa sociedade proverá a transformação da educação de acordo com os interesses da classe trabalhadora. Para Marx, isso não significa abrir mão de possíveis avanços democráticos, mas que devemos ter claro que cada pequeno avanço é uma conquista arrancada a duras penas da classe dominante, e que nossa tarefa é a construção de uma nova sociedade, socialista, controlada pelos trabalhadores. (p. 205-6 – MARX E A EDUCAÇÃO COMUNISTA DA JUVENTUDE de 1933)

A Escola do Trabalho  

Após o contato com os fundamentos marxistas para a concepção educacional de Krupskaya, é possível agora adentrar com maior facilidade em suas formulações com respeito à “Nova Escola” socialista e à escola do trabalho. Abaixo enumeramos cinco princípios que identificamos como centrais nessa perspectiva.

  1. Uma Escola do Trabalho em contraposição a uma escola de ensino (livresca)

No texto “Escola e Democracia” de 1915, Krupskaya desenvolve com bastante força sua concepção quanto a uma “Nova Escola”, mas no sentido socialista e proletário. Nesse texto ela se amparou bastante no exemplo dos EUA, e no filósofo pragmático e pedagogo liberal John Dewey.

Ela é crítica voraz do ensino livresco, da escola onde o estudante senta e fica “assimilando” conteúdos abstratos. Para ela, a educação soviética deve erradicar esse modelo educacional, sem, contudo, eliminar a parte teórica da educação.

Krupskaya utiliza como exemplo a experiência dos EUA no começo do século 20, onde ela salienta o desenvolvimento de uma pedagogia educacional voltada para o trabalho, para a atividade prática (construir objetos, esculpir, pintar, tocar) desde o jardim de infância e que se complexifica conforme avança o ensino e desenvolvimento intelectual das crianças e jovens.

Para ela é como se essa experiência demonstrasse em nível prático as formulações de Marx para a educação socialista, obviamente considerando que as intenções da burguesia norte-americana da época e até hoje se relacionam com as concepções marxistas.

Para a revolucionária russa, em especial as experiências norte-americana e a alemã demonstram que a unificação do trabalho com o ensino “‘intelectualiza’ o trabalho físico e […] fertiliza a atividade intelectual” e pode criar as bases para o fim da divisão da social do trabalho entre aqueles que pensam e aqueles que fazem (p. 44-45 – ESCOLA E DEMOCRACIA de 1915).

Devemos ressaltar que Krupskaya tem absoluta clareza de que, no âmbito da sociedade burguesa, todos os avanços promovidos por esse sistema são convertidos em seu contrário e que só com o controle da classe trabalhadora dos meios de produção e da escola é que a educação poderá ser, de fato, emancipadora:

“Enquanto a organização da questão escolar estiver nas mãos da burguesia, a escola do trabalho será um instrumento dirigido contra os interesses da classe operária. Apenas a classe operária pode fazer da escola do trabalho ‘um instrumento de transformação da sociedade moderna’.” (p. 60 – ESCOLA E DEMOCRACIA de 1915)

Ademais, veremos na seção dedicada ao Ensino Politécnico o que Krupskaya almeja para a escola do trabalho.

  1. Ligação da escola com o trabalho

Em MATERIAIS PARA REVISÃO DO PROGRAMA DO PARTIDO de maio de 1917, Krupskaya propõe a seguinte formulação para a pauta educacional dos bolcheviques:

“Educação gratuita, geral obrigatória e politécnica (que familiariza tanto na teoria como na prática com todos os princípios da produção) para todas as crianças de ambos os sexos com menos de 16 anos de idade; uma estreita ligação do ensino com o trabalho socialmente produtivo das crianças.” (p. 61)

Na próxima seção nos adentraremos sobre o termo “politécnico”, contudo, gostaríamos de salientar o trecho final: “estreita ligação do ensino com o trabalho socialmente produtivo das crianças.” Quanto a isso, encontramos alguns exemplos do que ela entende por “trabalho socialmente produtivo das crianças” e como isso pode ser aplicado na URSS:

“A organização das brigadas de trabalho e de jardim, o auxílio na produção de estatísticas, na separação e distribuição de correspondências, na costura e tricô de roupas quentes para os soldados, na limpeza das ruas por crianças de escolas americanas, na fabricação de alimentos, na contabilidade gerencial, na definição de falsificação dos produtos, na distribuição de cartazes e literatura, na produção dos manuais de ensino etc.” (p. 75 – SOBRE A QUESTÃO DA ESCOLA SOCIALISTA de 1918)

Para Krupskaya, essa conexão estruturante da escola com o trabalho faz com que a criança e o jovem comecem a repensar a problemática da produção enquanto algo cotidiano, de modo a propor soluções e criar alternativas a elas. O jovem passa, por meio do trabalho prático, a ter um olhar muito diferente do jovem que começa a trabalhar somente após o ensino superior. Ele aprende a conectar, desde cedo os conceitos teóricos com a vida prática (p. 85-86 – A QUESTÃO DA EDUCAÇÃO COMUNISTA de 1921).

Essa conexão da escola com o trabalho, contudo, não poderia ser artificial. Exatamente por isso ela entende que, embora as oficinas e instalações nas escolas tenham sua importância, “a escola deve esforçar-se para organizar o trabalho das crianças na própria produção” (p. 152 – SOBRE O POLITECNISMO de 1929). Ou seja, a escola deve promover experiências práticas aos estudantes no local onde a vida produtiva real acontece, nas fábricas e empresas preferencialmente, como a própria autora salienta em outro texto:

“É necessário que a questão seja colocada de tal modo que o trabalho destas oficinas seja organicamente ligado ao trabalho das fábricas, que o trabalho seja executado de acordo com um plano determinado, que isso seja um trabalho necessário para a produção, para o qual a escola contribua, que seja um trabalho realmente produtivo.” (p. 183 – grifo da autora em A ESCOLA POLITÉCNICA E A ORGANIZAÇÃO DOS PIONEIROS de 1932)

  1. Não repressão à personalidade dos estudantes

Baseando-se em Dewey, Krupskaya afirma que:

“A tentativa de reprimir a personalidade do estudante, obrigando-o a fazer aquilo que para ele não desperta interesse interior, conduz a uma dispersão da atenção, à fadiga, a uma recondução da atividade do organismo, ao enfraquecimento da vontade.”(p. 51 – ESCOLA E DEMOCRACIA de 1915)

Neste sentido, a autora advoga por uma pedagogia individualizada, mas não individualista dos estudantes. Isso depois será expresso em orientações gerais para a educação soviética pós-revolução de 1917.

A revolucionária russa não está somente amparada em Dewey nessa discussão, e também cita os estudos do médico alemão Ernst Weber. Nesse sentido, ela chama atenção para uma escola de trabalho conectada à necessidade de escutar as particularidades de cada aluno, de gerar possibilidades criativas a cada um deles. Na palestra de Ernst Weber de 1912 citada por Krupskaya, em ESCOLA E DEMOCRACIA de 1915, ele fala claramente em orientar o ensino de acordo com as vontades da criança e sobre a criança como “centro de toda a orientação da atividade educativa”, visto que a psique da criança é muito diversa da do adulto, sendo assim equivocado estruturar um ensino baseado no que os adultos pensam e são.

Krupskaya aqui também desvela as intenções deste tipo de noção dentro da sociedade capitalista e do modo como a classe capitalista poderia e hoje a utiliza para, por detrás de uma forma aparentemente democrática, efetivar seu domínio ideológico por meio da escola.

Hoje por exemplo é muito alardeado a necessidade de desenvolver propostas pedagógicas voltadas ao desenvolvimento do “Protagonismo estudantil”. Ela ilustra muito bem os interesses e objetivos burgueses desse tipo de proposta já no começo do século 20 ao explicar como os Kershenshteyner (representantes da burguesia alemã) aplicavam essa concepção pedagógica aos interesses da burguesia alemã:

“Ele [Kershenshteyner] quer escolas que, com a ajuda de novos métodos de ensino, cumpram objetivos antigos. A porta ficará um pouco aberta e a personalidade do estudante receberá algum espaço. A auto-organização é um meio para melhor prender a atenção dos estudantes, ganhar a sua confiança e, mais provável, para submetê-los à sua influência. Os novos métodos nas mãos dos Kershenshteyners são apenas um meio mais refinado e perfeito, construído sobre o conhecimento da personalidade das crianças, para afetar seus sentimentos e sua visão de mundo, penetrá-los com a correspondente moralidade e ideologia: a auto-organização das crianças deve ser direcionada num determinado sentido, despertar nelas o interesse pela tecnologia, pelo trabalho manual. Nisso, principalmente, deve se concentrar seu interesse. Isso, ao mesmo tempo, deve desviá-los das questões dolorosas da política e fornecer para a indústria de grande porte o contingente necessário de operários inteligentes e de iniciativa. […]” (p. 60-  ESCOLA E DEMOCRACIA de 1915)

  1. Auto-organização escolar

Um dos aspectos mais interessantes salientado por Krupskaya é como a escola do trabalho deve desenvolver hábitos organizativos nos estudantes. Ou seja, que a partir da escola os estudantes saibam como organizar os principais ramos produtivos da sociedade, se organizar politicamente, desenvolver habilidades de cooperação uns com os outros e aprender a organizar o trabalho na própria escola. Isso também envolve o combate ao individualismo burguês e a formação dos jovens como verdadeiros ativistas sociais, sempre pensando a sociedade e se preocupando com o aprimoramento da mesma para o bem coletivo.

A revolucionária russa chama atenção para os enormes problemas organizativos do Estado Soviético no estágio de desenvolvimento tecnológico da época e que, para além de superá-los, esperava-se complexificá-los. Porém, isso demanda uma escola que prepare toda uma geração de seres humanos para a realização dessa tarefa. Assim, “Uma das mais importantes funções da auto-organização escolar deve ser o desenvolvimento de hábitos de organização nas crianças.” Ela inclusive sugere que isso deve começar desde a educação infantil, por meio dos jogos pedagógicos (p. 117-9 – AUTO-ORGANIZAÇÃO ESCOLAR E ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO de 1923).

Para Krupskaya a discussão da auto-organização também se reflete na oposição entre escola de ensino e escola do trabalho. Somente na segunda a criança pode exercer a auto-organização de modo efetivo, pois na primeira o ensino é baseado na repetição e memorização (p. 121 – AUTO-ORGANIZAÇÃO ESCOLAR E ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO de 1923).

Por fim, ela também entende que no processo de discussão sobre quais tarefas devem ser realizadas e na própria estruturação das mesmas, as crianças e jovens devam ser escutadas, de modo ao professor não orientar tudo que elas necessitem fazer de modo impositivo e sem as escutar. Novamente aqui a influência de Dewey é clara:

Quando o professor dá para os meninos suas tarefas semanais no campo do trabalho social e, depois as corrige, o trabalho é posto de forma errada. O professor pode ter a iniciativa, dar conselhos, mas ele não deve ser o protagonista. As tarefas devem ser determinadas pelas próprias crianças, elas devem aprender a ter em conta os resultados.” (p. 133 – SOBRE A QUESTÃO DO TRABALHO SOCIALMENTE NECESSÁRIO DA ESCOLA em 1926)

  1. Formação dos professores

Em LENIN: SOBRE A EDUCAÇÃO E O PROFESSOR PÚBLICO de 1927, Krupskaya afirma que para Lenin, filho de pedagogo, a questão da organização da escola pública sempre foi da maior importância. (p. 137)

Num contexto pós-revolucionário, com a categoria dos professores ainda não totalmente proletarizada, compondo muitas vezes a parcela da classe média da população, ocorreu inclusive forte resistência política de parcela dos professores à Revolução de Outubro. Nessa situação, Krupskaya explica que Lenin salientava a proximidade dos professores em relação aos trabalhadores e camponeses, pois os primeiros lecionavam aos filhos dos segundos. Para além disso, Lenin defendia a criação de um sindicato de professores que funcionasse como uma “escola de comunismo” para o conjunto do magistério ajudando, assim, na implementação das tarefas do período de transição ao socialismo. Assim, após a Revolução de Outubro, para Lenin a principal tarefa dos sindicatos de professores era disseminar o conhecimento historicamente acumulado e contribuir para a definitiva emancipação dos trabalhadores (p. 139 – LENIN: SOBRE A EDUCAÇÃO E O PROFESSOR PÚBLICO de 1927).

Em termos mais técnicos, Krupskaya aponta 4 fatores essenciais para o educador soviético em seu texto O QUE O PROFESSOR DEVE DOMINAR PARA SER UM BOM EDUCADOR SOVIÉTICO de 1933:

  1. O professor, antes de tudo, deve conhecer sua matéria, a ciência que ele ensina e sua fundamentação”, mas no sentido de “dominar o fundamento dialético da ciência, […]” (p. 207 – destaques da autora)
  2. Capacidade de transmitir seus conhecimentos aos outros […]”, no sentido de ensinar o mais essencial de cada conteúdo e não o conteúdo todo. (p. 208)
  3. Domínio de uma pedagogia: “o conhecimento das peculiaridades da idade, da percepção e do pensamento da criança. De suas condições de desenvolvimento em cada idade, o volume da experiência de vida das crianças modernas, a natureza e a profundidade desta experiência.” (p. 208 – destaque todo da autora)
  4. Considerar as peculiaridades de cada disciplina, de cada campo do conhecimento (p. 209)

A revolucionária russa ainda extrai pensamentos de Marx quanto aos requisitos para o bom educador soviético. De acordo com ela, para Marx o educador soviético deve ter visão marxista de mundo, baseada nos princípios do materialismo-histórico e dialético em sua relação com os fenômenos naturais e sociais não esquecendo a importância da literatura artística (p. 246-8 – em OS ENSINAMENTOS DE MARX PARA O EDUCADOR SOVIÉTICO de 1938).

Educação Politécnica

Nesta última seção antes das considerações finais, tentaremos apontar o sentido da autora quanto à noção de Educação Politécnica, sua importância para a URSS e como Krupskaya defende que ela seja implementada.

A base do conceito de educação politécnica utilizado por Krupskaya já foi mencionada, quando ela defende uma “Educação gratuita, geral obrigatória e politécnica (que familiariza tanto na teoria como na prática com todos os princípios da produção) […]” (p. 61 – MATERIAIS PARA REVISÃO DO PROGRAMA DO PARTIDO de maio de 1917)

Mas o que seria “todos os princípios da produção”, do que exatamente ela está falando? Novamente fundamentada por Marx, a revolucionária russa se refere majoritariamente à indústria, contudo também ao “trabalho agrícola, técnico, artístico e de artesanato”, pois “o conhecimento prático de todos os ramos contribui para um desenvolvimento físico multilateral, produzindo hábitos de trabalho gerais.” (p. 62 MATERIAIS PARA REVISÃO DO PROGRAMA DO PARTIDO de maio de 1917 )

Em outro texto ela expõe com maior clareza formas de efetivação de uma Educação Politécnica, salientado partes dos conteúdos a serem abordados e sugerindo formas de fazê-lo, novamente enfatizando a necessidade da criança e do jovem participarem da produção diretamente:

“A escola politécnica deve fornecer um panorama da economia do país, familiarizar os estudantes com a indústria agrícola, com a mineração, com a manufatura e seus principais ramos de processamento de metal, têxtil, químico. Esta familiarização deve ser fornecida por meio de livros didáticos, ilustrações, cinema, visitas a museus, exposições, fábricas, usinas, e por meio da participação na produção. O último elemento é particularmente importante. Somente trabalhando com o material, o jovem o estuda em todos os seus aspectos.” (p. 85 – grifo nosso – A QUESTÃO DA EDUCAÇÃO COMUNISTA de 1921)

Nesse sentido, a tarefa da escola politécnica para Krupskaya não é preparar um especialista estreito, mas um ser com capacidade adaptativa a diferentes ramos produtivos:

“A tarefa da escola politécnica não é preparar um especialista estreito, mas uma pessoa que entenda toda interligação dos diferentes ramos de produção, o papel de cada um deles, as tendências de desenvolvimento de cada um deles; preparar uma pessoa que saiba o que e por que algo deve ser feito em cada momento, em uma palavra, preparar o dono da produção, no sentido verdadeiro desta palavra. Isso de um lado. Por outro lado, a escola politécnica deve educar, ao mesmo tempo, um estudante e um participante ativo desta produção. Ela deve equipá-lo com a capacidade de aproximar-se corretamente de cada trabalho, de aprender durante o processo de trabalho, de trabalhar de forma consciente e criativa, de aplicar o conhecimento teórico na prática, de orientar-se rapidamente no trabalho.” (p. 86 – A QUESTÃO DA EDUCAÇÃO COMUNISTA de 1921)

Aqui é importante ter claro que para Krupskaya o politecnismo não era uma disciplina, mas uma concepção de organização da educação pública: “Politecnismo não é alguma matéria específica de ensino, ele deve impregnar todas as disciplinas, refletir-se na seleção do material tanto na física como na química, bem como nas ciências naturais e nas ciências sociais” (p. 151 – SOBRE O POLITECNISMO de 1929).

Por fim, gostaríamos de salientar alguns hábitos do trabalho que Krupskaya objetivava desenvolver nas crianças e jovens russas por meio da Educação Politécnica, base essa para formação do novo ser humano:

“[…] (capacidade de colocar metas específicas para seu trabalho, planejar seu trabalho, fazer cálculos, elaborar desenhos, distribuir racionalmente o trabalho em si, trabalhar coletivamente, habilidade de usar economicamente o material, manusear ferramentas, executar determinados detalhes acessíveis para uma determinada idade, cuidados no trabalho etc.); por outro lado, compreende os processos de trabalho do ponto de vista técnico, a organização do trabalho, seu valor social (é claro, novamente, em correspondência com a idade e experiências de vida dos estudantes).” (p. 152 – SOBRE O POLITECNISMO de 1929)

Considerações Finais

O trabalho de Krupskaya é um dos mais importantes para compreendermos as concepções e práticas educacionais desenvolvidas na URSS. Como veremos em outros textos que ainda formularemos, os principais documentos e resoluções do Comissariado do Povo da Educação que legislavam as diretrizes para a educação soviética foram muito influenciados pelas ideias desta revolucionária russa.

Embora não concordemos com a totalidade do pensamento dela, pois temos muitas ressalvas quanto à influência liberal de Dewey em seu trabalho, é inegável sua efetiva contribuição na tentativa de criar uma educação pública, politécnica que forme as crianças e jovens para a construção do novo mundo, onde o trabalho socialmente necessário é de responsabilidade de todos e onde não existirá a oposição entre trabalho prático e trabalho intelectual, até hoje vigente.

Ressaltamos, por fim, a atualidade das ideias de Krupskaya, que devem ser utilizadas para organizarmos a transformação da educação pública hoje, no século 21, no Brasil e no mundo.

Fontes:

(1) FREITAS, Luiz Carlos de; CALDART, Roseli Salete (Orgs.). A construção da pedagogia socialista: escritos selecionados. 1ª ed., São Paulo: Expressão Popular, 2017.

PUBLICADO EM MARXISMO.ORG

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