SEGUNDA MARXISTA: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO MARXISMO – PARTE 3
imagem: Nikolai Artsybushev
Nesta edição da Segunda Marxista, apresentamos a terceira parte do artigo publicado em 1908 por Georgi Valentinovitch Plekhanov, um dos principais responsáveis por introduzir o marxismo na Rússia e fundador da social-democracia russa. Nesse artigo, ele aborda a concepção materialista de Feuerbach e suas limitações como ponto de partida para Marx e Engels elaborarem o materialismo histórico-dialético.
IX
A vida econômica se desenvolve sob a influência do crescimento das forças produtivas. É isto que explica porque as relações existentes entre os homens no processo da produção se transforma e com elas o estado psíquico humano. Marx diz:
“Num certo grau de sua evolução, as forças produtivas do sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes no seio desta sociedade ou, em termos jurídicos, com as relações de propriedade em cujo quadro estas forças evoluíram. De formas que favoreciam a evolução das forças produtivas, estas relações se tornam grilhões que as entravam. Inicia-se então uma época de revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a formidável superestrutura levantada sobre ela se transforma num ritmo mais ou menos rápido.
Nenhuma formação social desaparece antes que nela se tenham desenvolvido as forças produtivas que ela comporta, e relações de produção novas e superiores jamais ocupam o lugar das precedentes antes que as condições materiais indispensáveis à sua existência tenham amadurecido no seio da mesma antiga sociedade. Eis porque a humanidade só se coloca problemas que ela pode resolver, pois se considerar as coisas mais de perto, se chegará sempre à conclusão de que o problema só é proposto onde as condições materiais necessárias à sua solução já existem, ou, pelo menos, estão em vias de aparecimento“.
Temos aqui, sob os olhos uma verdadeira “álgebra”, uma “álgebra” puramente materialista, da evolução social. Nesta álgebra tanto há lugar para os “saltos” — da época da revolução social — quanto para as transformações graduais. Transformações graduais que, operando quantitativamente nas propriedades de uma dada ordem de coisas, culminam finalmente numa transformação da qualidade, ou seja, no desaparecimento do antigo modo de produção — ou da antiga formação social, segundo expressão empregada por Marx neste caso — e na sua substituição por um modo de produção novo. Segundo Marx, os modos de produção oriental, antigo, feudal e burguês contemporâneo, podem ser considerados, de forma geral, como épocas consecutivas “progressivas” da evolução econômica da sociedade. Mas é de supor que após ter tomado conhecimento do livro de Morgan sobre a sociedade primitiva, Marx modificou sua concepção da relação existente entre o modo de produção antigo e o modo de produção oriental.
Com efeito, a lógica do desenvolvimento econômico do modo de produção feudal levou à revolução social que marcou o triunfo do capitalismo. Mas a lógica do desenvolvimento econômico, por exemplo da China ou do Egito Antigo, não conduziu em absoluto ao aparecimento do modo antigo de produção. No primeiro caso, tratam-se de duas fases do desenvolvimento, onde uma sucede à outra e são engendradas por coexistentes de desenvolvimento econômico. A sociedade antiga sucedeu à organização social por clãs e esta precedeu igualmente ao advento do regime social oriental. Cada um destes dois tipos de organização econômica surgiu como resultado do crescimento das forças produtivas que se operara no seio da organização social baseada no clã e que devia, finalmente, levar à decomposição dessa organização. E se estes dois tipos diferem consideravelmente um do outro, suas diferenças principais se formaram sob a influência do meio geográfico. Num caso, ele prescrevia à sociedade que havia atingido um grau determinado de desenvolvimento das forças produtivas um certo conjunto de reclamações de produção, num outro caso, outro conjunto, bem distinto do primeiro.
A descoberta da organização em clãs é evidentemente chamada a ter na sociologia o mesmo papel que a descoberta da célula na biologia. E enquanto Marx e Engels não tinham conhecimento da organização em clãs, sua teoria da evolução social não podia deixar de comportar lacunas consideráveis, o que posteriormente foi reconhecido pelo próprio Engels.
Mas a descoberta da organização social em clã, que, pela primeira vez, permitia compreender os estágios inferiores da evolução social, nada mais foi que um argumento novo e poderoso a favor da interpretação materialista da história, não contra ela. Esta descoberta permitiu compreender bem melhor o processo das primeiras fases do ser social, assim como a maneira pela qual este último determinou então o pensamento social. E assim, esta mesma descoberta deu um brilho surpreendente à verdade que o pensamento social é determinado pelo ser social.
Isto, porém, foi dito apenas de passagem. O principal, sobre o qual é preciso reter a atenção é a indicação feita por Marx, que as relações de propriedade estabelecidas num grau determinado do desenvolvimento das forças produtivas favorecem durante um certo tempo, o crescimento destas forças, e ulteriormente começam a entravá-las. Ainda que um certo estado das forças produtivas seja a causa que suscita determinadas relações de produção e, em particular, de propriedade, estas últimas, uma vez surgidas como a consequência da causa indicada, começaram a influir, por sua vez, sobre esta mesma causa.
Estabelece-se assim um sistema de ação e reação recíprocas entre as forças produtivas e a economia social. Por outro lado, vêm-se edificar sobre a base econômica toda uma superestrutura de relações sociais, assim como sentimentos e concepções da mesma ordem. Ora, como esta superestrutura também começa a favorecer o desenvolvimento econômico para em seguida entravá-lo, se estabelece também uma ação e uma reação recíprocas entre a superestrutura e a base. Este fato resolve inteiramente o mistério de todos estes fenômenos que parecem, numa primeira abordagem, contradizer a tese fundamental do materialismo histórico.
Tudo o que foi dito até hoje pelos “críticos” de Marx sobre o suposto caráter unilateral do marxismo e sobre seu pretenso desprezo por todos os “fatores” da evolução social, exceto o fator econômico, resulta simplesmente da incompreensão do papel que Marx e Engels reservam à ação e reação recíprocas entre a “base” e a “superestrutura”. Para persuadir-se quão pouco Marx e Engels pretendiam ignorar, por exemplo, a importância do fator político, é suficiente ler as páginas do Manifesto do Partido Comunista, onde é abordado o movimento de emancipação da burguesia. Está dito:
“Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada se auto governando na comuna, aqui livre república municipal, lá terceiro estado tributário da monarquia, depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza nas monarquias limitadas ou absolutas, pedra angular das grandes monarquias, a burguesia, após o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou finalmente o poder político exclusivo no Estado representativo moderno. O governo moderno nada mais é que um comitê administrativo dos negócios comuns da classe burguesa“.
A importância do “fator” político aparece aqui com nitidez suficiente — alguns “críticos” iriam até considerá-la exagerada. Mas a origem e a força deste fator, assim como a sua maneira de atuar em cada período dado do desenvolvimento da sociedade burguesa, são explicados no Manifesto pela marcha do desenvolvimento econômico e, consequentemente, a variedade dos “fatores” em nada prejudica a unidade da causa inicial.
Não há dúvida que as relações políticas influem sobre o desenvolvimento econômico, mas é também indubitável que antes de influir sobre este desenvolvimento, elas são por ele criadas.
É preciso dizer o mesmo do estado psíquico do homem social, daquilo que Stammler chamava, um pouco unilateralmente, de “os conceitos sociais”. O Manifesto prova incontestavelmente que seus autores tinham compreendido bem o valor do “fator” ideológico. Mas vemos, de acordo com o mesmo Manifesto, que se o “fator” ideológico representa um papel importante no desenvolvimento da sociedade, ele próprio é previamente criado por este desenvolvimento.
“Quando o mundo antigo estava decadente, as velhas religiões foram vencidas pela religião cristã. Quando os ideais cristãos sucumbiram ante as ideias de progresso do século XVIII, a sociedade feudal travava uma luta de morte contra a burguesia, então revolucionária“.
Mas no caso que nos interessa, o último capítulo do Manifesto é ainda mais convincente. Seus autores aí dizem que seus companheiros de ideias aspiram inculcar nos operários, tão nitidamente quanto possível, a consciência do antagonismo existente entre os interesses da burguesia e os do proletariado. É compreensível que aquele que não atribua importância ao “fator” ideológico, não tenha motivo algum para aspirar a conscientizar do que quer que seja, a não importa qual grupo social.
X
Nós citamos o Manifesto de preferência aos outros escritos de Marx e Engels porque ele se refere à primeira época de sua atividade onde, como asseguram alguns de seus “críticos”, eles tinham uma forma particularmente “unilateral” de compreender as relações existentes entre os diferentes “fatores” do desenvolvimento social. Vemos claramente que também nesta época, Marx e Engels não se distinguiam por uma “maneira unilateral” de compreender as coisas, mas apenas por uma tendência ao monismo, por uma certa repugnância pelo ecletismo que tão manifestamente permeava as observações dos senhores “críticos”.
Não é raro que se refira a duas cartas de Engels, publicadas no Sozialistischer Akademiker e escritas uma em 1890, outra em 1894. Bernstein se apossou com alegria destas duas cartas, cujo conteúdo constituiria um suposto testemunho evidente da evolução que se teria consumado nas opiniões do amigo e colaborador de Marx. Ele extraiu daí duas passagens, em sua opinião, das mais convincentes, que consideramos necessário reproduzir aqui, dado que provam exatamente o contrário do que pretendeu provar Bernstein.
Eis a primeira destas passagens:
“Existem, portanto, forças inumeráveis que se entrecruzam, um número infinito de paralelogramos de forças, dando uma resultante, o evento histórico, que pode, por sua vez, ser considerado como o produto de uma potência agindo como um todo, sem consciência nem vontade. Pois aquilo que cada um quer separadamente, é impedido por todos os demais, e aquilo que daí resume, algo que ninguém quis” (Carta de 1890).
E agora, eis a outra passagem:
“O desenvolvimento econômico, jurídico, filosófico, literário, artístico etc., repousa sobre o desenvolvimento econômico. Mas todos eles reagem, conjuntamente e separadamente, um sobre o outro e sobre a base econômica” (Carta de 1894).
Bernstein achou que “isto soa um pouco diferentemente” do prefácio da obra Crítica da filosofia do direito de Hegel, que salienta a relação entre a “base” econômica e a “superestrutura” que sobre ela se levanta. Mas por que então “diferentemente”? A passagem acima nada mais faz, na realidade, que repetir o que foi dito no prefácio em questão. Este desenvolvimento político, como outros, repousa sobre o desenvolvimento econômico. O próprio Bernstein, evidentemente, compreendeu o prefácio da obra um pouco diferentemente, ou seja, no sentido de que a superestrutura social e ideológica que vem se levantar sobre a “base econômica” não exerce nenhuma influência sobre ela. Mas já sabemos que não há nada mais errado que tal maneira de compreender o pensamento de Marx. E aqueles que acompanharam de perto os ensaios “críticos” de Bernstein só podem dar de ombros vendo que o homem que outrora se havia proposto popularizar a doutrina de Marx não se dera ao trabalho, ou mais exatamente, se mostrara incapaz de compreender previamente esta doutrina.
Na segunda das cartas citadas por Bernstein, há de se elucidar o sentido causal da teoria histórica de Marx e Engels, passagens talvez bem mais importantes que as linhas tão mal compreendidas por Bernstein, acima reproduzidas. Uma destas passagens é concebida nestes termos:
“Não existe, portanto, um efeito automático da situação econômica, como alguns gostam de interpretar por comodismo. São os próprios homens que fazem sua própria história, porém dentro de um meio dado, que os condiciona, sobre a base de relações efetivas dadas. Entre estas últimas, as relações econômicas, por mais poderosa que seja a influência exercida sobre elas pelas outras relações de ordem política e ideológica, são, apesar de tudo, aquelas cuja ação é decisiva, no final de contas, e constituem o fio condutor que permite compreender o conjunto do sistema“.
Das pessoas que interpretam a doutrina histórica de Marx e Engels no sentido que “existe um efeito automático da situação econômica”, se encontrava também, como vemos agora, o próprio Bernstein, na época em que era ainda “ortodoxo”; entre elas, é preciso incluir também um grande número de “críticos” de Marx que recuaram “do marxismo ao idealismo”. Estes espíritos profundos dão prova de uma grande suficiência quando descobrem e mostram aos espíritos “unilaterais” que são Marx e Engels que a história é feita pelos homens e não pelo movimento automático da economia.
Assim, testemunham seu apreço por Marx e nem sequer desconfiam em sua incrível ingenuidade, que o Marx que “criticam” nada tem em comum, salvo o nome, com o verdadeiro Marx, o primeiro nada mais sendo que a criação de sua própria incompreensão que, entre eles, é verdadeiramente “multilateral”. É natural que “críticos” desta natureza tenham sido totalmente incapazes de “completar” e de “corrigir” o que quer que seja no materialismo histórico. Sendo assim, não nos ocuparemos mais deles, preferindo tratar daqueles que lançaram as bases desta teoria.
É extremamente importante salientar que quando Engels, pouco tempo antes de sua morte, repudiava a forma “automática” de conceber a ação histórica da economia, ele apenas repetia — quase nos mesmos termos — e comentava aquilo que Marx escrevera já em 1845, na terceira tese sobre Feuerbach, anteriormente reproduzida por nós. Marx reprovava ao materialismo anterior por ele ter esquecido que “se, de um lado, os homens são um produto do meio, este é, por outro lado, transformado precisamente pelos homens”. A tarefa do materialismo no domínio da história, tal como a concebia Marx, consistia portanto em explicar precisamente de que forma o “meio” pode ser transformado pelos homens que são, eles mesmos, os produtos deste meio.
E ele encontrava a solução deste problema indicando as relações de produção que se estabelecem sob a influência de condições independentes da vontade humana. As relações de produção são as relações que se estabelecem entre os homens no processo social da produção. Dizer que as relações de produção se modificam é dizer que as relações existentes entre os homens no processo em questão, se modificam. A transformação destas relações não pode se efetuar “automaticamente”, quer dizer, independentemente da atividade humana, porque elas são relações que estabelecem os homens no processo de sua atividade.
Mas estas relações podem se transformar — e de fato frequentemente se transformam — numa direção bem diferente daquela na qual os homens tencionavam modificá-las . O caráter da “estrutura econômica” e o sentido no qual este caráter se transforma não dependem da vontade humana, mas do estado das forças produtivas e da própria natureza das transformações que se produzem nas relações de produção e se tornam necessárias à sociedade em consequência do desenvolvimento destas forças. Engels explica isto nos seguintes termos:
“Os próprios homens fazem sua história, mas até agora, mesmo nas sociedades bem delimitadas, eles fizeram conforme uma vontade de conjunto nem segundo um plano geral. Suas aspirações se entrecruzam e é precisamente por isto que, em todas as sociedades semelhantes, reina a necessidade, da qual o acaso é o complemento e a forma sob a qual se manifesta“.
A própria atividade humana se define aqui não como uma atividade livre, mas como uma atividade necessária, quer dizer, regida por leis e podendo constituir o objeto de um estudo científico. Assim, portanto, o materialismo histórico, assinalando constantemente que o meio é modificado pelos homens, possibilita ao mesmo tempo, pela primeira vez, considerar o processo desta modificação do ponto de vista da ciência. E eis porque estamos no direito de dizer que a interpretação materialista da história fornece os prelúdios indispensáveis a toda doutrina sociológica que pretenda o título de ciência.
Tudo isto é tão verdade que, desde já, todo estudo de um aspecto qualquer da vida social só adquire valor científico na medida em que se aproxima da explicação materialista de seu objeto. E, apesar da famosa “ressurreição do idealismo” na sociologia, tal explicação se torna cada vez mais corrente onde os cientistas não se entregam a meditações edificantes e a grandes discursos sobre o “ideal”, mas se atribuem a tarefa de descobrir a relação causal entre os fenômenos. Atualmente, as pessoas que, além de não serem partidárias da concepção materialista da história, dela não têm sequer a menor ideia, sustentam que são materialistas em suas pesquisas históricas. E então a ignorância desta concepção materialista ou sua prevenção contra ela, que as impede de compreendê-la bem em todos os seus aspectos, leva-as efetivamente àquilo que conviria chamar concepções unilaterais e estreitas.
XI
Eis um exemplo. Há dez anos, o célebre sábio francês Alfred Espinas — diga-se de passagem, grande adversário dos socialistas atuais — publicava Origens da Tecnologia, “estudo sociológico” extremamente interessante, ao menos pela ideia que desenvolve. Partindo da tese puramente materialista que, na história da humanidade, a prática sempre precede a teoria, ele examina em sua obra a influência da técnica sobre o desenvolvimento da ideologia, ou seja, da religião e da filosofia, na Grécia Antiga.
Ele chega à conclusão que, em cada período deste desenvolvimento, a concepção do mundo dos antigos gregos era determinada pelo estado de suas forças produtivas. Este é, certamente, um resultado muito interessante e importante. Mas quem está habituado a aplicar o método materialista para a compreensão dos fenômenos históricos achará certamente que a ideia expressa no “estudo” de Espinas é demasiadamente unilateral. E isto pela simples razão que o sábio francês quase não deu atenção aos outros “fatores” do desenvolvimento da ideologia, tais como, por exemplo, a luta de classes. E no entanto, este fator tem uma importância realmente formidável.
Na sociedade primitiva, que ignora a divisão em classes, a atividade produtiva exerce uma influência direta sobre a concepção do mundo e sobre o gosto estético. A ornamentação recebe seus motivos da técnica e a dança — a arte talvez mais importante em tal sociedade — limita-se o mais frequentemente a reproduzir um processo de produção. Isto é particularmente visível entre as tribos caçadoras situadas no mais baixo grau de desenvolvimento econômico, acessível a nossa observação. É por esta razão que nos referimos principalmente a estas tribos quando tratamos da dependência na qual se encontra o estado psíquico do homem primitivo em relação à sua atividade econômica.
Mas, numa sociedade dividida em classes, a influência direta desta atividade sobre a ideologia se torna bem menos aparente. Isto é compreensível. Se, por exemplo, um gênero de dança executado pela australiana nativa reproduz simbolicamente seu trabalho de colheita de raízes, é evidente que nenhuma destas danças elegantes com as quais se divertiam, por exemplo, as belas mundanas da França no século XVIII, podia ser a interpretação de um trabalho produtivo destas damas, visto que elas não se ocupavam com nenhum trabalho produtivo, preferindo dedicar-se à “ciência do doce amor”. Para compreender a dança da australiana nativa basta conhecer o papel que representa na vida de uma tribo australiana a colheita, pelas mulheres, das raízes das plantas selvagens. Mas para compreender, por exemplo, o minueto, não basta, absolutamente, conhecer a economia da França no século XVIII.
Neste último caso está em questão uma dança que é uma expressão da psicologia de uma classe não produtora. A grande maioria dos “usos e costumes” da chamada “boa sociedade” se explica por este mesmo gênero de psicologia. Assim, portanto o “fator” econômico cede, aqui, o lugar ao fator psicológico. Mas não se pode esquecer que o próprio advento de classes não produtoras na sociedade é o produto de seu desenvolvimento econômico. Isto quer dizer que o “fator” econômico conserva inteiramente seu valor predominante, mesmo quando cede seu lugar a outros. Ao contrário, é precisamente então que este valor se faz sentir mais, pois são determinadas por ele a possibilidade e os limites da influência dos outros fatores.
Mas ainda não é tudo. A classe superior olha a classe inferior com um desprezo não velado, mesmo quando ela torna parte no processo de produção na qualidade de classe dirigente. Isto se reflete também na ideologia das classes em questão. As trovas francesas da Idade Média, e particularmente as canções de gesta, representam o camponês de então sob um aspecto dos mais desagradáveis. A dar-lhes crédito:
Li vialaen sont de laide forme
Aine si tres laide ne vit home;
Chaucuns a XV piez de granz
En auques ressemblet jâianz,
Mais trop sont de laide manière;
Boçu sont devant et derrière.
Mas os camponeses, evidentemente, tinham de si mesmo uma idéia totalmente diferente. Indignando-se com a arrogância dos feudais, cantavam:
Nós somos homens, assim como eles
(traduzido do francês)
E capazes de sofrer, assim como eles
e assim por diante.
E eles perguntavam: “Enquanto Adão arava e Eva fiava, onde estava o fidalgo?” Em suma, cada uma destas duas classes via as coisas de seu próprio ponto de vista, cuja característica particular era condicionada pela situação que estas classes ocupavam na sociedade. A luta de classes influenciava a psicologia das partes em luta. E assim era, naturalmente, não apenas na Idade Média e nem só na França. Quanto mais a luta de classes se acirrava num país e numa época dados, mais forte se tornava sua influência sobre a psicologia das classes em luta. Aquele que pretende estudar a história das ideologias numa sociedade dividida em classes, deve consagrar toda sua atenção a esta influência. De outra forma, nada compreenderá.
Experimente-se dar uma explicação econômica direta do aparecimento da escola de Davi na pintura francesa do século XVIII e se chegará a um resultado que nada mais será que um contra senso ridículo e fastidioso. Mas se considera escola como o reflexo ideológico da luta de classes que se desenvolve no seio da sociedade francesa às vésperas da Grande Revolução, imediatamente a questão mudará totalmente de aspecto. A arte de Davi que, como outras, poderia fazer crer, é tão desvinculada da economia social que não se pode, por meio algum, associá-las a esta última, se tornar então perfeitamente compreensível.
É preciso que se diga o mesmo da história das ideologias na Grécia Antiga: ela sentiu profundamente a influência da luta de classes. E é precisamente esta influência que Espinas pouco enfatizou em seu interessante estudo, o que dá a suas importantes conclusões um caráter demasiadamente unilateral. Poderíamos citar numerosos exemplos semelhantes e todos eles testemunhariam que a influência do materialismo de Marx sobre muitos estudiosos seria extremamente benéfica no sentido em que ela lhes ensinaria a considerar outros “fatores” além dos fatores técnico e econômico. Isto parece um paradoxo, mas é uma verdade incontestável que não mais nos surpreenderá se nos lembrarmos que, ainda que em Marx, todo movimento social seja explicado pelo desenvolvimento econômico da sociedade, ele é muito frequentemente explicado por este desenvolvimento apenas em última análise, ou seja, este movimento pressupõe a ação intermediária de toda uma série de outros “fatores”.
XII
Atualmente, uma outra tendência começa a se esboçar na ciência moderna. Ela é diametralmente oposta àquela que viemos de constatar em Espinas e se propõe a explicar a história das ideias pela influência exclusiva da luta de classes. Esta tendência bem nova, e no momento ainda pouco evidente, desenvolveu-se sob a influência direta do materialismo histórico de Marx. Nós a encontramos nos trabalhos do autor grego A. Eleuteropoulos, cuja obra principal, Filosofia da Economia (t. I, Die Philosophie und die Lebensauffassung des Griechen-tums au/ Grund der gesellschaftlichen Zustãnde e t. II, Die Philosophie und die Lebensau/jassung der germanish-römischen Volker), surgiu em Berlim em 1900. Eleuteropoulos sustenta que a filosofia de cada época expressa a Lebens-und Weltanschauung (vida e visão de mundo) próprios desta época. Isto não é exatamente uma novidade.
Hegel já dizia que cada sistema filosófico é a expressão ideológica de sua época. Mas, para Hegel, as particularidades das diferentes épocas e, portanto, das fases correspondentes ao desenvolvimento da filosofia, eram determinadas pelo movimento da “ideia absoluta”, enquanto que para Eleuteropoulos, cada época é caracterizada antes de mais nada pelo estado econômico que lhe corresponde. A economia de cada povo determina a concepção do mundo deste povo, concepção que encontra, como outras, sua expressão na filosofia. Ao mesmo tempo que se transforma a base econômica da sociedade, transforma-se também sua superestrutura ideológica. Mas tendo o desenvolvimento econômico conduzido à divisão da sociedade em classes e à sua luta, a concepção do mundo própria a uma época determinada não tem caráter uniforme: ela difere segundo as classes e se modifica segundo a situação, as necessidades, as aspirações destas classes e as vicissitudes da luta entre elas.
Este é o ponto de vista de Eleuteropoulos a respeito de toda a história da filosofia. Ele merece, incontestavelmente, a maior atenção e toda aprovação. Há muito tempo já se constatava na literatura filosófica uma certa tendência a não mais querer aceitar o velho método que consiste em só considerar a história da filosofia a simples filiação dos sistemas filosóficos. Em sua brochura publicada por volta de 1890 e consagrada à questão de saber como é preciso estudar a história da filosofia, Picavet, o conhecido escritor francês, declarava que tal associação explica, na verdade, muito pouca coisa.
Poder-se-ia saudar a publicação do livro de Eleuteropoulos como um novo passo à frente no estudo da história da filosofia e como uma vitória do materialismo histórico aplicado a uma das ideologias mais distanciadas da economia. Mas que pena! Eleuteropoulos não demonstrou um grande engenho no manejo do método dialético do materialismo. Ele simplificou ao extremo os problemas que surgiam diante dele e portanto só pôde encontrar para eles soluções muito unilaterais e, logo, muito pouco satisfatórias.
Tomemos, por exemplo, Xenófanes. De acordo com Eleuteropoulos, foi, em filosofia, o intérprete das aspirações do proletariado da Grécia Antiga. Foi o Rousseau de sua época. Ele era partidário de uma reforma social pela igualdade de todos os cidadãos, e sua teoria da unidade do mundo nada mais era que a base teórica de seus projetos de reformas. Sobre esta base teórica das tendências reformadoras de Xenófanes vinham logicamente edificar-se todos os detalhes de sua filosofia, iniciando por sua concepção da divindade e terminando por sua teoria, segundo a qual nossos sentidos nos dão uma representação ilusória do mundo exterior.
A filosofia de Heráclito, o Obscuro, fora engendrada pela reação dos aristocratas contra as aspirações revolucionárias do proletariado grego. A igualdade universal é impossível; a própria natureza faz os homens desiguais. Cada um deve contentar-se com sua sorte. No Estado é preciso objetivar não a derrubar a ordem estabelecida, mas a supressão do arbitrário, tanto sob o domínio de alguns quanto sob o da massa. O poder deve pertencer à lei, na qual a lei divina encontra sua expressão. A lei divina não exclui a unidade; mas a unidade, segundo esta lei é a unidade dos antagonismos. E por isto a realização dos planos de Xenófanes seria uma infração à lei divina. Desenvolvendo este pensamento e apoiando-o em outros argumentos, Heráclito criou sua doutrina do devir.
Isto é o que diz Eleuteropoulos. A falta de lugar não nos permite reproduzir outros extratos de sua análise das causas determinantes da evolução da filosofia. Mas não há quase necessidade em fazê-lo. O leitor, esperamos, vê por si mesmo que esta análise teve pouco êxito. Na realidade, o processo da evolução das ideologias é incomparavelmente mais complexo. Lendo suas considerações — não se pode ser mais simplista — sobre a influência que a luta de classes exerceu sobre a história da filosofia, lamentamos que Eleuteropoulos não tenha conhecido o livro precitado de Espinas, cuja maneira unilateral, somada à sua própria, teria, talvez, preenchido muitas lacunas em sua análise.
Qualquer que seja, a infeliz tentativa de Eleuteropoulos não deixa de constituir um argumento novo em favor da tese — inesperada para muitos — que um conhecimento mais aprofundado do materialismo histórico de Marx seria de grande utilidade a inúmeros estudiosos contemporâneos, justamente para preservá-los de cair em formas unilaterais de tratar as questões. Eleuteropoulos conhece o materialismo histórico de Marx. Porém, conhece mal. Prova disso é a pretensa retificação que ele supõe necessária aí introduzir.
Ele observa que as relações econômicas de um determinado povo só condicionam “a necessidade de seu desenvolvimento”. O próprio desenvolvimento seria um problema individual; de forma que a concepção do mundo deste povo está determinada, em primeiro lugar, por seu caráter e o da região que habita, em segundo, pelas necessidades desse povo e, finalmente, pelas qualidades pessoais dos homens que atuam como reformadores em seu seio. É somente neste sentido, observa Eleuteropoulos, que se pode falar de uma relação da filosofia com a economia. A filosofia satisfaz as exigências de seu tempo, e isto conforme a personalidade do filósofo.
Eleuteropoulos pretende, evidentemente, que esta concepção das relações entre a filosofia e a economia represente algo muito novo em relação à concepção materialista de Marx e Engels. Ele julga necessário dar um novo nome à sua interpretação da história, denominando-a a teoria grega do devir. É simplesmente divertido, e a propósito só se pode dizer uma coisa: a “teoria grega do devir” não sendo, na realidade, nada mais que materialismo histórico muito mal digerido e exposto de maneira muito incoerente, promete entretanto, muito mais do que dá Eleuteropoulos quando passa da caracterização de seu método à sua aplicação. Então ele já se distancia totalmente de Marx.
No que concerne especialmente à “personalidade do filósofo” e, em geral, à de todo homem que deixa na história humana o vestígio de sua atividade, é um grave erro acreditar que a teoria de Marx e de Engels não lhes tenha reservado espaço. Ela certamente reservou. Mas ao mesmo tempo soube evitar a admissível oposição entre a atividade do “indivíduo” e a marcha dos acontecimentos, determinada pela necessidade econômica. Recorrer a tal oposição é provar que não se compreendeu grande coisa da explicação materialista da história. A tese inicial do materialismo, como repetimos inúmeras vezes, diz que a história é feita pelos homens. E se ela é feita pelos homens, está claro que é feita, também, pelos “grandes homens”. Só resta discernir o que exatamente determina a atividade destes homens. A propósito disto, Engels diz numa das cartas que citamos acima:
“Que um tal homem, e precisamente este, surja numa época determinada e num país determinado é, naturalmente, puro acaso. Se nós, porém, o eliminamos, será necessário um substituto, que acabamos sempre por encontrar de uma forma ou de outra. É preciso atribuir ao acaso o fato que o ditador militar, cujo advento se tornara necessário para a República Francesa esgotada por suas próprias guerras, fosse precisamente o corso Napoleão. Mas que, na falta de Napoleão, outro teria preenchido seu lugar, está provado pelo fato que o homem necessário, César, Augusto, Cromwell ou outro, foi encontrado sempre que necessário.
Se Marx descobriu a concepção materialista da história, o exemplo de Thierry, Mignet, Guizot e de todos os historiadores ingleses até 1850 mostra que havia uma tendência para este resultado; e a descoberta desta mesma concepção por Morgan prova que havia chegado seu tempo e que ela era uma necessidade. O mesmo sucede com todos os acasos ou com tudo o que parece acaso na história. Quanto mais o domínio que exploramos se distancia da causa econômica e adquire um caráter ideológico abstrato, mais nós encontramos acasos em seu desenvolvimento, mais sua curva se desenha em ziguezague. Mas trace o eixo médio da curva e você descobrirá que quanto mais o período a examinar é longo e o domínio tratado é vasto, mais este eixo tenderá a tornar-se paralelo ao do desenvolvimento econômico“.
A “personalidade” de todo homem eminente no domínio intelectual ou social pertence ao rol destes acasos cujo aparecimento não impede, absolutamente, a linha “média” do desenvolvimento intelectual da humanidade, de seguir um curso paralelo ao de seu desenvolvimento econômico. Eleuteropoulos teria percebido melhor o que precede, se tivesse estudado atentamente a teoria histórica de Marx e se estivesse menos preocupado em criar sua própria “teoria grega”.
Inútil acrescentar que atualmente estamos longe de poder descobrir sempre a relação causal entre o aparecimento de uma idéia filosófica e a situação econômica de sua época. Mas é porque apenas começamos a trabalhar nesta direção; se nós estivéssemos à altura de dar uma resposta a todas as questões que aqui se colocam, ou mesmo apenas à maioria delas, nosso trabalho já estaria terminado, ou próximo a isso. No presente caso, o que importa não é o fato de ainda não sabermos dar conta de todas as dificuldades encontradas neste domínio. Não há e não pode haver método capaz de suprimir de um só golpe todas as dificuldades que surgem na ciência.
O que importa é que a interpretação materialista da história dá conta das dificuldades em questão com facilidade incomparavelmente maior que as interpretações idealistas e ecléticas. A prova disso é que o pensamento científico no domínio da história tendia com uma força excepcional para uma explicação materialista dos fenômenos que, por assim dizer, ela buscava com insistência desde a época da Restauração, não cessava de gravitar em torno dela, de procurá-la até a época atual e isto apesar da nobre indignação que se apodera de todo ideólogo burguês que se preze, quando ouve a palavra “materialismo”.
A obra de Franz Feuerherd, intitulada Die Entstehung der Stile aus der politischen Oekonomie, erster Theil (Leipzig, 1902), pode servir de terceiro exemplo para mostrar como são atualmente inevitáveis as tentativas de fornecer uma explicação materialista de todos os aspectos da cultura humana. Feuerherd diz:
“Segundo o modo de produção predominante e a forma de Estado por ele condicionada, a inteligência humana se desenvolve em sentidos determinados, os outros lhe permanecendo inacessíveis. E por isto a existência de todo estilo (na arte) pressupõe a existência de homens vivendo em condições políticas determinadas, produzindo segundo um modo de produção determinado e animados por ideais determinados. Quando estas causas prévias estão dadas, os homens criam os estilos correspondentes, tão necessária e inevitavelmente quanto a tela embranquece, o brometo da prata escurece e o arco-íris aparece nas nuvens assim que o sol, sua causa, provoque estes efeitos” .
Isto é justo e é interessante constatar que é um historiador da arte quem o reconhece. Mas quando Feuerherd começa a explicar a origem dos diversos estilos gregos pelo estado econômico da Grécia antiga, ele chega a um resultado esquemático demais. Nós não sabemos se a segunda parte de sua obra foi editada. Não nos interessamos em saber porque compreendemos que ele assimilou mal o método materialista moderno. Por seu esquematismo, seus raciocínios nos lembram os dos nossos clotitrinários Fritsche e Rojkov, aos quais é preciso recomendar, como a ele, que estudem, antes de mais nada e sobretudo, o materialismo contemporâneo. Apenas o marxismo pode resguardá-los de cair no esquematismo.
PUBLICADO EM MARXISTS.ORG