Sobre cucas e quarentena

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Acordei com a minha mãe me chamando para comer cuca de banana. Saltei da cama salivando, às 6h30min da manhã. A famosa cuca da Dona Vera sempre foi sinônimo de muita alegria aqui em casa, para mim e para os meus irmãos. Saí do quarto descalço mesmo, porque não tinha tempo para procurar o chinelo perdido embaixo da cama. Deslizei a mão na cortina improvisada que separa a sala da cozinha, fui até a mãe sentada em uma das três cadeiras da mesa, dei-lhe um beijo estralado na testa enrugada. Sentei-me. Ela me serviu o café. Agarrei um pedaço da cuca ainda quente com os dedos, retirado de uma forma de alumínio. Que perfume delicioso ela exalava. Falar de comida é coisa baixa, mas só para quem já comeu, dizia Brecht. Dona Vera me alerta: “Coma só dois pedaços, pense nos outros guris!” Eu sabia que aquele era um luxo de início de mês, daqueles de logo depois da compra. Era uma quarta-feira de quarentena. Naquele dia eu tinha uma entrevista de emprego.  A terceira da semana. Era para ser, pensando no tanto de currículo que enviei, a empresa não ligou cancelando, mesmo com rico de contaminação por corona vírus.

Saí de casa esperançoso. Não sei se foi a cuca, ou a despedida da minha mãe que vinha sempre com um “vai com Deus, meu filho”. ônibus vazio, eu e mais uns quatro. Achei gozado que apenas eu não usava máscara. Ouvi música o caminho todo. Saltei no centro da cidade. Parecia domingo. Quase todas as lojas fechadas. Chegando na empresa da entrevista, uma moça de máscara me recebeu. Ela não parecia feliz. Mas com a máscara quase não se reconhece alguma emoção nas pessoas. Entro na sala da entrevista. As mesmas perguntas de sempre. “Quais são seus objetivos?”; “Quais são seus defeitos e qualidades?”; “Por que quer trabalhar conosco?”. Pensei, não posso ser sincero, preciso trabalhar. Sobreviver até o mês que vem. Mesmo sabendo que a minha força de trabalho vai sustentar um patrão que eu não conheço, ou fazer um produto que eu não vou ter condições de comprar. Mas não são motivos bons o bastante para ser contratado. Minto. Como sempre eles informam que irão retornar se o resultado for positivo ou negativo, arrumar emprego é meio como resultado de doença. Mas a empresa só vai contratar mesmo em um mês por causa da pandemia. Só eu que sinto meu tempo perdido em entrevistas de emprego?

Na volta para casa uso meu último passe de ônibus. Mais pessoas que na viajem de ida ocupam os lugares. Sento perto da janela, nem reparo mais nas máscaras, não ouço música. Penso na minha mãe. No que eu vou dizer quando ela me perguntar “Como foi?” com aqueles olhinhos. Se eu pudesse dizer para ela: “Mãe, o capitalismo está condenado!”; “Mãe, chama suas amigas da igreja, todo mundo! Vamos derrubar esse sistema!”. Apesar do desânimo comum de um desempregado, há uma esperança, a revolução. Chego em casa, lavo as mãos e a Dona Vera me olha e pergunta: “Como foi, meu filho?”. Eu desvio o olhar e respondo com outra pergunta: “Sobrou cuca?”.

Minha mãe é enfermeira. Quase não a vejo por esses dias. Ela está sempre cansada e dormindo quando eu chego. Quando eu acordo ela não está mais. Hoje de manhã bem cedinho ela veio me acordar para perguntar se eu precisava de alguma coisa. Olhei para ela meio sonolento, pareceu que eu estava vendo outra pessoa, bem mais velha. Lembrei-me de Lênin quando disse que “há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem”. Essas últimas semanas foram pesadas por causa dessa pandemia global. Minha mãe trabalha em um hospital privado da minha cidade. Quando levantei essa manhã para falar um pouco com ela, não era só a saudade que me incomodava, era para ter notícias dela, ou dos pacientes que ela cuida. Para ela me confirmar que tudo aquilo que a gente vê na televisão é real. Ela nem quis entrar em detalhes, mas me deu muitas instruções de como sair na rua sem ser contaminado ou contaminar alguém. Ela disse que estava preocupada com a tia Cléo. A tia Cléo trabalha na Santa Casa. Há uns seis meses ela já vinha reclamando que não tinha médicos suficientes para atender todo mundo. E que alguns dos pacientes estavam em macas no corredor. A situação agora deve ter piorado muito. Eu me lembro de quando vi anunciarem na tevê que o governo federal congelaria os gastos com saúde, educação e outros serviços públicos por vinte anos. Lembro de ter conversado com a tia Cléo depois disso. Ela dizia, já naquela época, que nós, estudantes, devemos nos preparar para buscarmos outra alternativa no futuro. Ela não tava falando de buscar serviços privados que supostamente supririam as nossas necessidades. Ela falava de uma alternativa para a sociedade como um todo. A tia Cléo sempre foi exemplo de luta para nós aqui de casa. Filha mais nova da minha avó, eu via sempre um brilho no olhar dela quando ela falava de política. Batia na mesa, discutia e defendia sempre o lado dos trabalhadores. Com ela que aprendi que os estudantes têm uma organização que luta por melhores condições nas escolas. Minha tia sempre foi sindicalizada. Tentava arrastar minha mãe para as reuniões, mas minha mãe sempre disse que era velha demais para essas coisas. Por causa delas que eu vou em frente. Falo com meus amigos, com os professores, com o resto da família. Falo que o capitalismo não dá conta das nossas necessidades há muito tempo. E que todos os trabalhadores merecem condições dignas de vida, não só os patrões. Tudo isso eu aprendi lendo, é claro. Mas no fundo eu sei que a tia Cléo está falando através de mim. E me orgulho disso. Não sei como será daqui pra frente, mas vou aprender fazer cuca, que as futuras gerações possam ter cuca o mês todo.

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