“Abaixo a Ditadura”: a Liberdade e Luta nos anos 80 e a atual

Este artigo foi originalmente publicado na brochura “Sou Liberdade e Luta”, lançada em nossa Conferência Nacional realizada em 23 de outubro de 2021. A brochura tem como objetivo registrar nossa história, nossa fundação, nossos princípios e nossas campanhas. Em 2023, completamos sete anos de existência e decidimos publicar o conteúdo dessa brochura para que todos possam ler e nos conhecer melhor. Ao final deste artigo você também pode baixar o PDF completo da brochura. Você pode contribuir para que possamos seguir publicando materiais como esse e para o autofinanciamento de nossa organização, doando qualquer quantia através do PIX: souliberdadeeluta@gmail.com. ISBN: 978-65-00-32924-7. Boa leitura!

Na década de 1960, a Ditadura Militar empreendeu a destruição do movimento estudantil. A repressão recrudesceu a partir de 1968 e acontecimentos como os assassinatos do secundarista Edson Luís, do dirigente estudantil Alexandre Vannuchi Leme, e do jornalista Vladmir Herzog; o decreto-lei nº 477, de 26 de fevereiro de 1969, que punia trabalhadores e estudantes acusados de “subversão”; e outros ataques do regime burguês, organizado pelas Forças Armadas e pelo imperialismo, provocaram importantes protestos estudantis, inclusive com a formação de comitês de ação em defesa dos presos políticos, greves e toda forma possível de organização contra a repressão. 

Na década seguinte, como resultado de todas as mobilizações do período, foi fundada a organização de juventude Liberdade e Luta, em 1976, a partir da fusão de duas organizações trotskistas, a Organização Primeiro de Maio e a Organização Marxista Brasileira, passando a ser vinculada à Organização Socialista Internacional (OSI). Sua base foi a Universidade de São Paulo e seu impulsionamento prático foi a inscrição de uma chapa para disputa da direção do Diretório Central dos Estudantes (DCE) Livre Alexandre Vannucchi Leme, refundado em 1976, à margem da estrutura oficial, que era aparelhada pela ditadura. Ressalta-se que, para além da USP, a Liberdade e Luta também foi composta tanto por estudantes universitários de outros locais, quanto por secundaristas em todo o país, identificando-se com um novo agrupamento revolucionário. 

Muitas vezes esta organização era chamada de “Libelu”, um apelido pejorativo que os stalinistas cunharam para a Liberdade e Luta com o intuito de diminuir a organização. Ainda na década de 1970 as influências das políticas dos epígonos de Stalin eram hegemônicas na esquerda mundial, portanto, as correntes stalinistas, assim como a própria direita, utilizavam dos meios mais sujos para ridicularizar os opositores de esquerda. Tais difamações eram, inclusive, de taxar as reuniões da Liberdade e Luta como “festas degeneradas, regadas a drogas e álcool”. Ainda hoje achamos na internet alguns artigos com o mesmo discurso contra a antiga Liberdade e Luta, mas para combater esses ataques, respeitando seu legado, este artigo se propõe a contar um pouco da história desta importante organização revolucionária da juventude brasileira e internacionalista.

Os métodos e o programa da Liberdade e Luta

A Liberdade e Luta se diferenciava das outras organizações porque propunha aos jovens os métodos de luta da classe trabalhadora. Com uma militância organizada, a Liberdade e Luta realizava a formação, agitação e propaganda por greves e manifestações de massa, sendo a primeira organização a levantar a palavra de ordem “abaixo a Ditadura” publicamente. Enquanto isso, outros grupos que não confiavam na força da juventude e da classe trabalhadora, afirmavam que isso seria uma mera provocação à ditadura, o que, segundo eles, pioraria a situação de repressão. Para a Liberdade e Luta, mais do que uma questão de intrepidez, tratava-se de fazer a leitura correta da conjuntura política. A correlação de forças já não era a mesma do fim dos anos 1960, em especial com o AI-5, pois, desta vez, o poder militar enfrentava cisões internas e uma crise econômica gravíssima e era função da luta organizada radicalizar o discurso nas ruas para empurrá-lo ladeira abaixo. 

A palavra de ordem “abaixo a Ditadura” tomou o lugar da usada anteriormente, “pelas liberdades democráticas”, e no início dos anos 1980 já era entoada em uníssono por todo movimento, sendo esses atos os momentos que fragilizaram ainda mais a ditadura. Assim, foi na prática que a Liberdade e Luta demonstrou que só as mobilizações das massas impulsionariam uma modificação real da sociedade brasileira, em defesa do marxismo.

Como dissemos, no início da Ditadura a situação era outra. O Decreto-Lei nº 228, de 28 de fevereiro de 1967, a partir do Ato Institucional n°4, foi uma expressão disso ao reformular a representação estudantil do ensino superior, reprimindo a organização política dos discentes. Ao longo destes anos, o histórico DCE da USP, fundado em 1958, passou por inúmeros ataques do Estado e seus representantes locais, mas a força dos estudantes e dos trabalhadores, que auxiliavam na formação política destes jovens, reconquistou a independência do Diretório com sua refundação, citada anteriormente. Desta forma, em 1978, a Liberdade e Luta venceu as eleições nas urnas de voto direto para o DCE-Livre da USP com o seguinte programa e as seguintes reivindicações:

Por liberdades democráticas:

  • Eleições livres e diretas;
  • Liberdade de organização para os partidos políticos e para os sindicatos;
  • Anistia geral para os presos e exilados políticos;
  • Abolição total de censura;
  • Direito de greve;
  • Revogação dos Atos Institucionais e dos Decretos-Lei repressivos: 477, 288, “Lei de Segurança Nacional”;
  • Fim das prisões e torturas no Brasil.

Pela democratização da universidade:

  • Abolição dos atestados ideológicos para professores;
  • Pelo reconhecimento por parte da burocracia universitária do DCE-Livre como único organismo representativo dos estudantes da USP;
  • Eleições diretas para diretores e reitores pelos estudantes, funcionários e professores;
  • Pela democratização do ensino: livre debate nas salas de aula, liberdade de criação e pesquisa, colaboração entre estudantes e professores na elaboração dos cursos;
  • Que os auditórios e demais dependências da Universidade estejam abertos à utilização de todos estudantes;
  • Fim do policiamento ostensivo no campus;
  • Contra a participação nos organismos impostos pelo MEC: órgãos colegiados e Conselho Universitário.

Por melhores condições de ensino:

  • Contra a reforma universitária;
  • Contra o ensino pago;
  • Contra a criação de universidade de Ribeirão Preto (URP); 
  • Mais verbas para universidade;
  • Contra o vestibular, pelo livre acesso à universidade;
  • Por transporte, restaurantes, e completa assistência médica e dentária gratuitos.
  • Pela reabertura do conjunto residencial da USP;
  • Professores contratados a tempo integral com salários condizentes;
  • Contra o jubilamento e a portaria 351;
  • Contra educação física obrigatória;
  • Organização de ciclos de debates universitários;
  • Contra os pré-requisitos;
  • Por uma biblioteca sempre aberta, ampliada e atualizada;
  • Abolição das taxas.

Reorganização do Movimento Estudantil:

  • Todo apoio aos encontros estaduais e nacionais de estudantes, por área de ensino e gerais;
  • Todo apoio à comissão Nacional de Luta pelas Liberdades Democráticas;
  • Constituição de uma comissão cultural do DCE que aglutine e coordene os grupos de Teatro, Cinema e Música já existentes, incentivando a formação de outros;
  • Constituição de uma comissão de assistência do DCE encarregada de questões relativas ao CRUSP, COSEAS e ao transporte;
  • Vinculação da LAUFE ao DCE através de uma Comissão de Esportes;
  • Por um centro de vivência central, sede do DCE;
  • Trote unificado.

A base destas propostas do fim dos anos 1970 segue atual para o movimento estudantil. Compreendê-las politicamente e extrair esse legado é fundamental para a atuação da juventude em nosso tempo em defesa da Educação Pública, Gratuita e para Todos. 

Costumes e moral da militância

Ao contrário das outras organizações que só escutavam MPB acusando as músicas estrangeiras de imperialismo, a antiga Liberdade e Luta possuía suas referências estéticas e musicais na cultura de contestação do rock, com suas letras atacando a moral e os bons costumes. Segundo Lúcia Pinheiro: “existia um grupo, o Viajando sem Passaporte, que fazia críticas fantásticas à música engajada”.

Em suas festas havia uma relação mais aberta quanto a música e a liberação sexual, sem deixar de realizar uma forte crítica às drogas, que sempre fizeram parte da política da Liberdade e Luta, pois isso certamente traria a repressão para seus militantes e para a organização. Era uma questão de disciplina e de combate, já que as drogas foram usadas por muitos governos para acabar com os movimentos sociais, como nos Estados Unidos, quanto a implantação da heroína nos bairros negros para desmobilizar o Partido dos Panteras Negras.

Abaixo a Ditadura!

A Liberdade e Luta tinha em suas reivindicações o combate aos Decretos-Lei que eram utilizados como uma ferramenta para repressão do movimento estudantil, como o Decreto-Lei nº 477, conhecido também como “AI-5 estudantil”, que definia como “subversão” estudantes, professores e funcionários de instituições de ensino que incitassem greves, ou participação nesses movimentos, “atentados” contra pessoas e instalações, dentro ou fora dos estabelecimentos de ensino. 

Qualquer prática relacionada a movimento estudantil era enquadrada, como no paralelo da atual “Lei de Segurança Nacional” que busca considerar aqueles que se organizam politicamente como “terroristas”. Na prática, passeatas e paralisações públicas só poderiam ocorrer caso a ditadura autorizasse. O Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967, era utilizado para prevenção e repressão contra “guerra psicológica adversa” e contra a “guerra revolucionária subversiva”, isto é, segundo os parágrafos 2 e 3, respectivamente, “o emprego da propaganda, da contrapropaganda e de ações nos campos político, econômico, psicossocial e militar, com a finalidade de influenciar ou provocar opiniões, emoções, atitudes e comportamentos de grupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos, contra a consecução dos objetivos nacionais” e “o conflito interno, geralmente inspirado em uma ideologia ou auxiliado do exterior, que visa à conquista subversiva do poder pelo controle progressivo da Nação”. 

As punições para os envolvidos eram, no mínimo, a demissão, mas, na realidade, a Ditadura não agia assim. A repressão sequestrou, torturou, assassinou e desapareceu com os corpos destas pessoas. Tais leis foram ferramentas reacionárias contra a classe trabalhadora, contra a juventude e suas organizações.

Contra todos esses desmandos do governo bonapartista militar, a Liberdade e Luta se construiu e ajudou no histórico empreendimento de luta que foi o Partido dos Trabalhadores. Estes jovens também foram os primeiros a reivindicar a criação de um partido e de uma central sindical independente e do proletariado brasileiro, capaz de se tornar as maiores ferramentas revolucionárias do povo trabalhador. O PT nasceu com disputas internas sobre os pilares do seu programa e a Liberdade e Luta representava uma ala crítica, junto à OSI. Aqueles dirigidos por Lula, que eram conhecidos por defender um “PT como partido de toda a sociedade”. Todavia, as divergências políticas não fizeram os militantes da Liberdade e Luta serem sectários, pelo contrário, acreditaram na capacidade desta ferramenta de classe que foi o Partido dos Trabalhadores e impulsionaram sua construção. 

Que fim levou a Liberdade e Luta?

Em 1986, uma crise dividiu a OSI ao meio. Uma parte do Comitê Central (CC) deu um giro à direita entrando para Articulação de Esquerda, corrente interna do PT, dentre eles, Antônio Palocci, Clara Ant e Luiz Gushiken. Já os que permaneceram começaram a se questionar sobre o que fazer com a Liberdade e Luta, que estava definhando por paralisação na sua atuação. 

Nesse momento foi decidido pelo CC que o nome e a forma organizativa estavam inadequados para aquela conjuntura, já que o nome “Liberdade e Luta” surgiu como fruto do seu momento de fundação: pela “liberdade democrática e pela luta nas ruas”, ambas impossibilitadas pela Ditadura Militar. Portanto, naquele momento de abertura política, a representação dessas defesas era feita pelo PT e a CUT, que convocou a primeira greve geral no período da redemocratização.

Então, era necessário um nome que fosse um chamariz para os jovens estudantes e trabalhadores nesse renascimento brasileiro de 21 anos de chumbo: Juventude Revolução. Essa refundação se tornou a organização da juventude vinculada à corrente interna do PT, O Trabalho, um dos jornais operários mais antigos do país. 

A Liberdade e Luta dos anos 80 e a atual Liberdade e Luta

Hoje reivindicamos o nome da antiga Liberdade Luta e seus métodos de luta, mas existem algumas diferenças entre aquela organização da década de 1970 e a que impulsionamos na atualidade, fundada em 2016 no acampamento revolucionário na fábrica ocupada Flaskô, em Sumaré, São Paulo. Nossa organização nasce pelo recrudescimento do Estado burguês e da histórica crise do sistema capitalista, que explodiu em 2008 e se aprofunda a cada ano. 

Afirmando e colocando em prática os métodos operários, combatendo todos os desvios liberais do pós-modernismo, a Liberdade e Luta também é fruto das jornadas de junho e julho de 2013, nas quais milhões de jovens e trabalhadores foram às ruas contra os ataques aos serviços públicos realizados pelo governo de conciliação do PT. A juventude revolucionária que estava nas ruas naquele período denunciou e demonstrou toda a ira contra a traição da direção petista, que transformou o maior partido operário do continente em instrumento de repressão e manutenção do sistema burguês. 

Desta forma, os jovens que anteriormente compuseram a Juventude Revolução¹ e a Juventude Marxista², compreenderam a conjuntura e fundaram a nova Liberdade e Luta, com esse nome também em homenagem aos diversos militantes da Esquerda Marxista – Seção Brasileira da Corrente Marxista Internacional -, que fizeram parte da originária Liberdade e Luta. Nossa fundação tem seu marco na publicação de nosso manifesto assinado e publicado em 31 de janeiro de 2016³.

Nossa atuação defende o legado da antiga Liberdade e Luta, aprofundando a defesa, a formação e a divulgação do marxismo, da revolução permanente e do socialismo. Atuamos sem baixar nossas bandeiras vermelhas com um programa de transição que luta pelas liberdades democráticas, pelos serviços públicos, gratuitos e para todos, pela solidariedade internacional dos povos trabalhadores e com a direta intervenção nos locais de estudo e trabalho da juventude. 

Em todos os momentos, denunciamos a total falência do modo de produção capitalista em salvar a humanidade da crise que este sistema nos impõe. Trata-se da barbárie escancarada aos olhos de uma juventude que não possui perspectiva em seu horizonte, a não ser mais exploração e opressão de todas as formas possíveis. Tais denúncias são conectadas com as necessárias críticas e caracterizações às demais organizações e direções estudantis, que, adaptadas ao regime burguês, atuam para a manutenção deste sistema e seu consequente atraso. 

Se a antiga Liberdade e Luta tinha sentido em seu tempo pelo “abaixo a Ditadura”, nós reafirmamos a atualidade da Liberdade e Luta apontando para a necessidade histórica do “abaixo o capitalismo”! Essa devida atuação para a conquista da juventude comunista e de todo o proletariado no Brasil tem pedra angular, capaz de abrir uma situação revolucionária nas ruas, a palavra de ordem “Abaixo o Governo Bolsonaro, por um Governo dos Trabalhadores, sem Patrões, nem Generais”! 

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Referências e notas:

¹A Juventude Revolução continua existindo como organização de juventude da corrente O Trabalho. Os jovens a que nos referimos aqui são aqueles que compuseram a Juventude Revolução e romperam com ela na cisão de 2006 da corrente O Trabalho que veio a dar origem a Esquerda Marxista, seção brasileira da Corrente Marxista Internacional.

² Organização de juventude impulsionada pela Esquerda Marxista que foi dissolvida em 2016 quando fundamos a Liberdade e Luta em 2016.

³ Liberdade e Luta. Manifesto da Liberdade e Luta. Disponível em: https://liberdadeeluta.org/manifesto-da-liberdade-e-luta

AZEVEDO, Ricardo. Medo e liberdade, 1997. Teoria e Debate. Disponível em: <https://teoriaedebate.org.br/1997/07/01/medo-e-liberdade/>. 

Revista Forum. A Libelu ganhou o poder. Disponível em: <https://revistaforum.com.br/revista/19/a-libelu-ganhou-o-poder/>.

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