Em defesa da Revolução Permanente

Republicamos aqui este artigo que faz parte da brochura “MARX ESTAVA CERTO”, lançada em 2020 pela Liberdade e Luta. Nela você vai encontrar artigos de introdução aos clássicos do marxismo, escritos por jovens camaradas. Com poemas e ilustrações, feitas pelos nossos camaradas e outros artigos, representa um esforço coletivo para aproximar os jovens do marxismo. Ao final desse artigo, você encontra o PDF da brochura para baixar gratuitamente. Você pode contribuir para que possamos seguir publicando materiais como esse e para o auto financiamento de nossa organização, doando qualquer quantia através do PIX: souliberdadeeluta@gmail.com. Boa leitura! 

O livro A Revolução Permanente foi publicado pela primeira vez em 1930. Trotsky o escreveu quando se encontrava exilado em Alma-Ata, Cazaquistão. Porém, suas principais ideias foram teorizadas antes de 1905.

Quase três décadas após a criação do “núcleo duro” da teoria, Trotsky se viu obrigado a retomar sua defesa: “(…) A consciência social tem horror ao vácuo”. Durante anos o vácuo teórico foi preenchido com falsificações e calúnias em nome do anti-trotskismo. A gota d’água foi um artigo escrito por Karl Radek, antigo membro da Oposição de Esquerda, que colocava a teoria da revolução permanente em confronto com as ideias de Lênin. Era o caminho de Radek para a capitulação.

A Oposição de Esquerda foi uma corrente interna do Partido Bolchevique fundada por Trotsky, em 1923, que combatia a política desenvolvida por Stalin e se constituiu como base da luta marxista contra a reação ideológica. Mas o trabalho de Radek não tem, segundo o autor, “uma análise aprofundada das fontes e documentos, nem uma perspectiva histórica justa”, considerando que haviam se passado três revoluções para dar-lhe experiência. Mas o que significa revolução permanente?

A teoria da revolução permanente e o socialismo em um só país

Durante quase toda a década de 1920 o desdobramento da luta de classes internacional não trouxe resultados positivos, por vários motivos, desde certa estabilidade do capitalismo mundial pós-guerra, mas principalmente devido ao início da burocratização da Terceira Internacional, o que levou a derrota de diversas revoluções, como a revolução alemã e a  consequente ascensão de Hitler, a vitória de Franco na Espanha.  As mesmas derrotas, por sua vez, acabavam por fortalecer a própria burocracia, dado o isolamento da Rússia Soviética.

Os quatro primeiros congressos da Terceira Internacional Comunista (IC) foram vitoriosos e termos de importantes contribuições revolucionárias. Mas após a morte de Lenin, a URSS sofreu com uma degeneração nacionalista histórica, que influenciou o declínio da Internacional Comunista, nas mãos de Zinoviev e Stalin. As ordens vinham de cima para baixo, com manobras, ameaças e expulsões arbitrárias, muito mais fáceis do que convencer politicamente e de forma paciente os camaradas nas discussões.

Após o proletariado alemão não conseguir tomar o poder no país, graças às campanhas ultra esquerdistas de Zinoviev e Stalin contra a Frente Única, todas as esperanças dos trabalhadores russos retornaram quando uma revolução chinesa era iminente. Trotsky relata que inclusive nesse período a Oposição começou novamente a recrutar militantes. Porém, toda a reação ideológica contra sua teoria trabalhava em um processo de sabotagem da revolução chinesa de 1923, e culminou em sua trágica derrota. Os principais elementos da política stalinista são a defesa do “socialismo em um só país”, o que significava, na prática, o isolamento da revolução russa e a teoria da revolução por etapas, que tinha como centro a capitulação frente as burguesias “progressistas” e o abandono da ditadura do proletariado, isto é, da própria revolução socialista

A revolução chinesa e a Internacional

O Partido Comunista chinês foi fundado em 1921.No país existia um partido nacionalista forte e de massas, o Kuomintang (KMT).  Sob a desculpa de que uma revolução libertadora nacional se faria em pouco tempo abrindo caminho para uma tomada socialista, os dirigentes da Internacional Comunista, em 1924-25, ordenaram que os integrantes do Partido Comunista chinês adentrassem o KMT de forma individual, e a ele se subordinassem. Os sovietes foram desmobilizados, o movimento agrário foi contido sob ordens de Stalin e Zinoviev. O Comintern[1] sob o comando stalinista impunha sobre a China sua política de capitulação, com a autoridade de quem “representava a herança” de Lenin e da Revolução de Outubro.

Uma série de erros de estratégia, desde a defesa da palavra de ordem de ditadura democrática (substituindo a da ditadura proletária), e concessões à burguesia nacional desmoralizaram o Partido Comunista chinês. Depois de tudo isso, a construção de um movimento operário forte com bases socialistas ficou impossibilitada, e sua tentativa foi massacrada pelo Kuomintang. A caçada contra os comunistas e líderes da classe trabalhadora e camponesa começou. Milhares de militantes chineses foram fuzilados.

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                                            Imagem: Mulheres na Revolução Chinesa 

O papel dos camponeses e a revolução democrática

Trotsky se opunha a fórmula ditadura democrática do proletariado e dos camponeses que a Internacional Comunista usava como dogma. A fórmula foi imposta como palavra de ordem aos trabalhadores chineses organizados, sem que se fizesse uma análise histórica da luta de classes na Revolução de 1905, de fevereiro de 1917, nem da própria Revolução de Outubro. Mas essa palavra de ordem, criada por Lenin como uma hipótese estratégica, nunca existiu ou foi comprovada realmente. Apesar de crer na real importância social e revolucionária dos camponeses, afirmava que os mesmos não são capazes de um papel revolucionário independente do proletariado, nem mesmo de formar um partido independente.

Também se opondo a ideia de que, ao caminhar para a ditadura do proletariado, o país atrasado teria que passar por longos anos de democracia burguesa (teoria da revolução por etapas), como se ela fosse um fim em si, a teoria da revolução permanente afirma que as tarefas democráticas estão intrinsecamente vinculada à revolução socialista. Os países atrasados, para alcançarem as tarefas democráticas não executadas pelas suas próprias burguesias dado seu atraso e dominação, somente as alcançariam com uma revolução socialista.  “Desta maneira, tonava-se permanente o desenvolvimento revolucionário que ia da revolução democrática à transformação socialista da sociedade”, explica Trotsky.

O internacionalismo na Revolução Permanente

Um dos mais importantes aspectos da teoria da revolução permanente é o internacionalismo. Um Estado proletário isolado, vítima de contradições internas e externas criadas por esse isolamento, tende a sucumbir. As forças produtivas da sociedade capitalista já ultrapassaram as fronteiras nacionais. Cientes disso, os marxistas devem saber que o socialismo deveria representar um estágio mais elevado politicamente, mas também na área da produção e da técnica. Construir um socialismo “nacional” é fazer as forças produtivas recuarem em relação ao capitalismo.

Trotsky afirma que “o internacionalismo não é um princípio abstrato: ele não é senão o reflexo político e teórico do caráter mundial da economia, do desenvolvimento mundial das forças produtivas e do ímpeto mundial da luta de classes”. Ou seja, a revolução nacional apenas representa uma das conexões da revolução internacional. E justamente por causa destes representa um processo permanente.

“O programa realista de um Estado operário isolado não deveria propor-se a atingir a independência em relação à economia mundial, nem muito menos construir uma sociedade socialista nacional dentro do mais breve prazo. Seu objetivo será obter não os ritmos abstratos e máximos, mas os ritmos melhores, que derivassem das condições econômicas internas e mundiais, que consolidassem as posições do proletariado, que preparassem os elementos nacionais da sociedade socialista internacional do futuro, e que, ao mesmo tempo, e antes de tudo, melhorassem sistematicamente o nível de existência do proletariado (…)”. (TROTSKY, 2007, p. 51-52)

Todas essas questões estão conectadas e formam toda a teoria. O stalinismo as separa de forma oportunista, para tirar proveito, falsificá-la, descartá-la como “trotskismo”. Para os stalinistas, geralmente disfarçados de “marxista-leninistas”, a luta por uma revolução internacional deixa de ser essencial para a vitória do socialismo, e a sociedade socialista isolada se torna um fim em si, daí sua capitulação às burguesias nacionais, contra a “ameaça fascista” ou as “forças reacionárias”.

A lei do desenvolvimento desigual e combinado e as particularidades nacionais

Uma das principais contribuições para a teoria marxista do século XX foi a Lei do desenvolvimento desigual e combinado já elaborada por Marx e Engels e desenvolvida por Trotsky. Com ela aprendemos que os países atrasados não precisam passar por todas as mesmas fases de desenvolvimento que os países avançados. E que os trabalhadores destes países não precisam apoiar a burguesia (que há muito já perdeu seu caráter revolucionário), como antes fizeram na Revolução Francesa. Um projeto revolucionário autônomo e de classe deve ser composto na luta contra o grande capital para a vitória da revolução socialista, de acordo com as particularidades de cada país.

A Revolução de Outubro é um ótimo exemplo prático dessa lei. A Rússia adotou indústrias modernas ao mesmo tempo em que mantinha um regime semifeudal e predominantemente agrário. Mesmo assim os trabalhadores russos conquistaram o poder antes de qualquer outro país com uma economia mais desenvolvida que vivia sob uma democracia burguesa. As particularidades nacionais podem representar as táticas e estratégias revolucionárias por longos anos e juntas, formam traços indispensáveis da evolução mundial:

(…) Basta comparar a Inglaterra e a Índia, os Estados Unidos e o Brasil. Os traços específicos da economia nacional, por mais importantes que sejam, constituem, em escala crescente, os elementos de uma unidade mais alta que se chama a economia mundial e que serve, afinal de contas, de base ao internacionalismo dos partidos comunistas. (TROTSKY, 2007, p. 41)

Retomando os erros da Internacional Comunista dirigida por Stalin e Bukharin quanto à China, foi em 1924 que a burguesia chinesa e seu partido (KMT) foram reconhecidos como dirigentes de uma futura revolução nacional. Como se esse estágio fosse absolutamente necessário para os comunistas e para a conquista do poder pelo povo no futuro. Já falamos que a subordinação dos comunistas chineses ao Kuomintang levou a derrota da Revolução Chinesa de 1927.

A atualidade da discussão

Nada pode substituir a leitura do texto original. O resgate histórico da teoria da revolução permanente é essencial para todo revolucionário. É o resgate do próprio internacionalismo e de sua defesa. Estamos subordinados e ligados ao mercado internacional e não há maneira de recuar. No mundo todo os trabalhadores sofrem as mesmas dores e morrem diretamente e indiretamente por causa do capitalismo. Em meio à pandemia do Covid-19 podemos enxergar isso claramente quando a burguesia nacional e internacional deseja “sacrificar” a vida de qualquer proletário antes de perder seu lucro.

Nos últimos anos vimos diversos debates crescendo na internet, entre os stalinistas que reivindicam conquistas da Revolução de Outubro e ignoram (propositalmente) os crimes cometidos por Stalin aos trabalhadores da Rússia e do mundo todo.

Todo o triunfo da revolução de 1917 se deu pela organização dos trabalhadores e o partido bolchevique dirigido por Lenin e Trotsky. A URSS foi o primeiro país a legalizar o direito ao aborto, por exemplo. Stalin se apropriou de vários desses êxitos feitos antes da burocratização total do partido, e inclusive depois de tomar o poder, retirou várias das conquistas dos anos anteriores. Restaurou, por exemplo, o modelo burguês e patriarcal de família e em 1936, proibiu e passou a punir as mulheres que realizavam a interrupção da gravidez, sendo esse apenas um dos exemplos.

Em defesa da revolução permanente

É importante destacar que o embate teórico travado pela defesa da revolução permanente nunca foi uma luta acadêmica ou tão somente teórica. Os crimes cometidos pelo regime burocrático da URSS tiveram consequências mortais para a classe trabalhadora em todo mundo. Já dizia Trotsky que “a realidade não perdoa o menor erro de doutrina”.

Desde 1923 moveu-se uma batalha que se opunha as ideias de Trotsky e da Oposição de Esquerda. A doutrina do “socialismo em um só país” foi elaborada por Bukarin e aplicada Stalin pela primeira vez em 1925. A figura de Trotsky era importuna e sua remoção política e, mais tarde física, era essencial para a burocracia, que desejava estabilidade para levar adiante seus privilégios e seu plano de fortalecer o seu socialismo em um só país.

Leon Trotsky dedicou sua vida à emancipação dos trabalhadores, e em especial suas últimas décadas denunciando os crimes do regime burocrático stalinista, até ser assassinado a mando de Stalin em 1940, aos 60 anos de idade. A campanha pessoal movida contra Trotsky acabou se tornando uma campanha contra as tradições de outubro e do próprio marxismo. Cabem a nós, marxistas desse milênio, a defesa da teoria da revolução permanente e o combate ao revisionismo oportunista. Venceremos!

Referências:

[1] Comintern (em cirílico Komintern) é o acrônimo de Kommunisticheskiy Internatsional (Internacional Comunista).

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