Literatura, Cultura e Marxismo

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                                                          Tarsila do Amaral “Operários”

Assim como a Filosofia, a Arte não nasce da terra feito cogumelos, mas é produto de sua época contextualizada pela luta de classes. Portanto, suas fantasias, histórias e diálogos com a realidade não emergem de ideias sublimes ou do pensamento puro, pois, a ideia é formulada pelas condições materiais de uma época, não sendo capaz de ultrapassar concretamente os contextos econômicos, sociais, políticos e culturais de seu período histórico. Para uma suprassunção nesse processo são necessários os humanos em ação, estes sim, munidos da força prática para a produção material e intelectual.

Por isso, períodos históricos de acirramento da luta de classes são profícuos em produções artísticas, literárias e culturais destinadas a denunciar o sistema capitalista. Na história do Brasil, vê-se isso em diversos momentos, como, por exemplo, nas manifestações artísticas da década de 1920, sendo resultados do contexto de desigualdades sociais, aspirações de industrialização do país e conflitos políticos da primeira República. Bem como a produções durante a ditadura militar, onde movimentos de contestação ao regime floresceram devido as condições de vida e opressão no país. Na atualidade, o governo Bolsonaro também vem sendo alvo da Arte. Por meio da música, da literatura, do cinema, etc., a juventude e a sociedade em geral buscam expressar sua revolta contra os ataques de Bolsonaro e seu sistema podre, ainda que, por vezes, sem uma direção correta para canalizar tal ódio de classe.

Diante disso, esse texto possui o intuito de demonstrar o papel e a importância da literatura na compreensão da realidade para atuação prática dos revolucionários. Em conjunto, realizará algumas considerações sobre a possibilidade ou não da construção de uma cultura proletária nos marcos da revolução socialista.

A Literatura

Em Marx e Engels, a literatura se constitui em um duplo sentido, como técnica e método textual, sendo em última instância, também fonte histórica. Os revolucionários trabalharam dessa maneira para que o trecho literário por eles utilizado, realizasse uma ligação entre o problema e sua solução. Assim, a literatura surge, então, como um feixe de luz que adentra um quarto escuro e, antes, incompreendido.

A utilização desta arte por Marx e Engels, demonstra como a obra marxista exemplifica a possibilidade da omnilateralidade humana, ou seja, o Homem completo, compreendendo e atuando armado pela totalidade do conhecimento desenvolvido pela humanidade. Isto significa o oposto do realizado pelas sociedades compostas por classes, que cerceiam o conhecimento humano, amputando as capacidades intelectuais, pois operam a exploração de uma classe contra outra. O marxismo, por sua vez, defende e oferece a ciência revolucionária para a superação deste humano limitado e oprimido, demonstrando que apenas com a construção da sociedade comunista, a humanidade poderá desfrutar de todas suas capacidades, como Marx e Engels explicam na obra “A Ideologia Alemã” (1846):

“[…] na sociedade comunista em que cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode se aperfeiçoar no ramo que lhe agradar, a sociedade regulamenta a produção geral, o que cria para mim a possibilidade de hoje fazer uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar na parte da tarde, cuidar do gado ao anoitecer, fazer crítica de arte após as refeições, a meu bel-prazer, sem nunca me tornar caçador, pescador ou crítico” (MARX; ENGELS, 1998, p. 28-29).

Trata-se, portanto, de uma ciência que percorre todos os campos científicos. Da Economia Política ao Direito. Da Filosofia à História. Da Biologia à Geografia. Da Matemática à Literatura. Ao analisar e escrever sobre as guerras, as explorações do homem pelo homem, a violência sanguinária do capital, a construção histórica das sociedades, Marx e Engels nunca renunciaram à sensibilidade encontrada na literatura em suas produções, pois visavam a educação e a ação revolucionária da classe trabalhadora.

Um exemplo de como os revolucionários alemães aportaram-se da literatura pode ser visto pela frase de Goethe, um dos poetas preferidos de Marx: “onde os conceitos faltam, ali se encaixa no momento certo, uma palavra”. Isto significa que o tropo empregado em determinado momento, desvela o objeto de estudo de Marx, realçando e reforçando a argumentação proposta. Trata-se não de uma mera procura pela palavra certa ou a frase literária que se encaixe em lacunas do texto, mas dos termos que cooperem para a investigação da história e reflexão da realidade para sua atuação prática no presente.

Para ficar mais clara a utilização da literatura como reveladora da realidade, a luz que ilumina o breu alienante do capitalismo, pode-se verificar como Marx explica, didaticamente, o que é o Dinheiro, nos “Manuscritos Econômico-Filosóficos de Paris”, de 1844. Convocando Shakespeare e Goethe, Marx elucida: “como se vê, a mercadoria ama o dinheiro, mas o curso do verdadeiro amor não é suave”. Aqui, o revolucionário refere-se a uma frase da peça “Sonho de uma noite de verão” (1590), de Shakespeare, para explicar a ligação entre mercadoria, dinheiro, produtores privados e o sistema universal de interdependência que é construído partindo do processo social de produção, visto em “O Capital” (1867).

Outra das inúmeras apropriações de Shakespeare que Marx realiza é do seguinte trecho de “Timão de Atenas” (1607):

“Ouro! Ouro vermelho, fulgurante, precioso!

Uma porção dele faz do preto, branco; do feio, bonito;

Do ruim, bom; do velho, jovem; do covarde, valente; do vilão, nobre.

Ó deuses! Por que isso? Por que isso, deuses;

Ah, isso vos afasta do sacerdote e do altar:

E arranca o travesseiro de quem nele repousa;

Sim, esse escravo vermelho ata e desata

Vínculos sagrados; abençoa o amaldiçoado;

Faz a lepra adorável; honra o ladrão,

Dá-lhe títulos, genuflexões e influência,

No conselho dos senadores;

Traz à viúva carregada de anos pretendentes;

Metal maldito, é da humanidade a comum prostituta”.

Neste, Marx demonstra o drama que arrasta as pessoas, as classes e as frações de classes para uma tragédia quando o dinheiro a tudo dilacera e inverte o valor das relações humanas. A tudo ele compra, vulgariza e corrompe, no seio do modo de produção capitalista.

Noutro exemplo do referido texto, Marx demonstra com Goethe, retirando de sua obra “O Fausto” (1829), que o que somos não depende absolutamente de uma suposta individualidade, pois tem-se como intermediário do sujeito ao objetivo ou ao mundo em geral, o dinheiro:

51NR0nCwz4L._SX348_BO1%2C204%2C203%2C200_.jpg“Com a breca! pernas, braços peito,

Cabeça, sexo, aquilo é teu;

Mas, tudo o que, fresco, aproveito,

Será por isso menos meu?

Se podes pagar seis cavalos,

As suas forças não governas?

Corres por morros, clivos, valos,

Qual possuidor de vinte e quatro pernas”.

O dinheiro, assim, é o cafetão em uma promíscua relação entre a vida humana e os meios de subsistência, entre a necessidade e o objeto necessário. Ancorado nos dois escritores alemães, Marx escracha que o dinheiro possui o poder de levar os incompatíveis a confraternizarem, residindo seu poder divino no aprofundamento da alienação produtiva e na autoalienação humana.

Marx requisita a literatura, portanto, como componente metodológico para exposição, ampliando a noção que uma fonte pode possuir no trabalho intelectual. Trata-se da metáfora enquanto âmago da escrita literária, pois retirando-a do texto, deixa-o incompleto. Por isso, a importância de Goethe em Marx, ao auxiliá-lo na apresentação desveladora do capitalismo. Sistema este que busca, com a ideologia dominante de cada época, sendo, por sua vez, a ideologia da classe dominante, falsear a realidade, buscando justificá-la e humanizá-la.

Apreende-se, assim, que literatura e ciência, mesmo sendo evidentemente distintas, não são antagônicas, mas responsáveis por um diálogo entre a fantasia e o rigor científico. No marxismo, a literatura aparece como possibilidade exemplar para se ampliar a pesquisa da materialidade da vida e das relações humanas, enriquecer a teoria e iluminar a práxis revolucionárias na luta pelo socialismo.

A Cultura

Ao compreender que Marx, Engels, Lênin e Trotsky sempre realizaram a práxis nutridos também pela Arte, entendendo-a como produto de sua época, formada pela ideologia da classe dominante, são também necessárias considerações sobre uma outra questão do âmbito cultural: os comunistas defendem uma cultura “contra hegemônica” à burguesia, ou melhor, uma “cultura proletária”?

Antes da resposta, a juventude aprende com Trotsky que na história da humanidade para que uma nova classe dominante consiga formar e consolidar sua cultura de maneira hegemônica, em sua época, houve a necessidade crucial de um longo período. Ou seja, tanto anterior a tomada do poder político e econômico, quanto a partir das revoluções até a decadência desta classe para a suprassunção de outro modo de produção. Por exemplo, a cultura burguesa, que foi edificando-se ao longo de cinco séculos e florescendo, em sua plenitude, no século XIX.

Porém, quanto o proletariado, ao ascender como classe dominante, abolindo a propriedade privada, tomando o poder político e econômico da sociedade, por meio de sua revolução, realizará sua ditadura apenas como um breve período de transição (TROTSKY, p. 161, 1969). Ou seja, somente por dezenas de anos e não séculos, como realizaram as anteriores classes em suas ditaduras.

À vista disso, retornamos o questionamento: a classe trabalhadora terá de formular uma Literatura, Arte e Cultura proletária, sabendo que os anos de sua ditadura serão acirrados pela reação burguesa de pura violência e guerra de classes? Não! Como afirma Trotsky, não deve haver uma cultura proletária.

Ao tomar o poder do Estado e construir sua ditadura de caráter transitório, expropriando a burguesia, planificando e controlando a produção, a classe trabalhadora terá como missão iniciar o processo de dissolução do Estado, eliminando consigo as classes sociais. Isto significa cumprir tarefas emergentes para as melhorias das condições de vida, elevando dialeticamente, o nível cultural da nova sociedade.

QUESTOES_DO_MODO_DE_VIDA_1347843317B.jpgEsse processo em permanente movimento faz-se fundamental para o proletariado, pois a elevação da cultura e o acesso a ela, interferem também na produtividade do trabalho, possibilitando o desenvolvimento da economia planificada e a formação do humano completo. Isso é demonstrado com a história da revolução russa, como escreve Trotsky em “Questões do Modo de Vida” (1923), ao explicar que as relações entre a estabilização do breve Estado operário-camponês e as conquistas de melhorias nas condições de vida dos trabalhadores russos, estavam completamente conectadas com o desenvolvimento de uma cultura do trabalho, cultura da vida e cultura do modo de vida. Alerta também que essas elevações das relações humanas não ocorrem com um só golpe, mas como processos lentos, realizados efetivamente pela classe trabalhadora e seu partido.

O desenvolvimento dessas culturas significam, entre outros exemplos, a erradicação do analfabetismo, o provimento de livros, bibliotecas, teatro, música, pintura, arte em geral e educação politécnica à sociedade, sendo parte do processo revolucionário, ou seja, inserido na produção e reprodução da vida, com o controle e organização dos trabalhadores. Por isso trata-se de um processo lento e não de projetos de laboratório, com a criação artificial de uma cultura proletária.

Trotsky ensina que projetos de laboratório, que tornam o processo revolucionário em mecanicista, ignorando a dialética, são frutos das deturpações da era stalinista na URSS, tanto em relação ao tema da cultura, quanto à suposta consolidação do socialismo no país. Essas explicações encontram-se em sua obra “A Revolução Traída” (1937), onde o revolucionário traça, entre outros aspectos, o paralelo entre o que Lênin explica em “O Estado e a Revolução” (1917) com a situação da URSS nos anos 1930:

“Depois de Marx e Engels, Lênin foi o primeiro a apreender o traço distintivo da revolução. Esta, ao expropriar os exploradores, suprime a necessidade de um aparelho burocrático que domina a sociedade e, antes de tudo, da polícia e do exército permanente. “O proletariado tem necessidade do Estado, todos os oportunistas repetem”, escrevia Lênin em 1917, dois ou três anos antes da conquista do poder, “mas esquecem-se de acrescentar que o proletariado só tem necessidade do Estado que vá desaparecendo, isto é, um Estado que cedo comece a desaparecer e não possa deixar de desaparecer” (O Estado e a Revolução). Esta crítica era, no seu tempo, dirigida contra os socialistas reformistas do tipo dos menchevistas russos, dos fabianos ingleses, etc.; hoje, esta crítica volta-se com força dobrada, contra os idólatras soviéticos e seu culto ao Estado burocrático que não tem a menor intenção de ‘desaparecer’” (TROTSKY, p. 38, 1980).

Esse exemplo oferecido por Trotsky, ao denunciar a burocracia stalinista, demonstra que o desenvolvimento do Estado operário-camponês, isto é, o estágio inferior do comunismo, como assinalou Marx em “Crítica ao Programa de Gotha” (1875), deve ser com o processo de seu desaparecimento, e não seu recrudescimento, como realizado pela traição da revolução russa a partir segunda metade da década de 1920.

Portanto, buscar a formação de uma cultura proletária torna-se uma política anticomunista, pois significaria a consolidação do proletariado como uma classe dominante. Por isso, é necessária a compreensão que no socialismo, quanto mais a classe trabalhadora proteger-se da reação burguesa, militar e politicamente, ela produzirá, permanentemente a cultura e a arte nutrida pelo legado das antigas sociedades, mas libertando-se da exploração do homem pelo homem, fruto da nova sociedade. Assim, libertar-se-á consequentemente de seu caráter de classe, deixando de ser, então, proletariado (TROTSKY, p. 162, 1969).

Assim, diferentemente do que se pode pensar, a inexistência de uma cultura proletária não deve ser lamentada, mas defendida pelos revolucionários, pois o objetivo da tomada do poder pelos trabalhadores é justamente a extinção das classes, bem como todos seus subprodutos. É, nas palavras de Trotsky, a tomada do poder para dar fim a “cultura de classe e abrir o caminho a uma cultura da humanidade”. Portanto, querer propor uma cultura proletária, almejando uma antítese à cultura burguesa, significa uma ação de caráter stalinista e vulgarização das analogias históricas, que cumprem uma tarefa antimarxista.

Para nossa luta no hoje

Os revolucionários precisam se formar com melhor arte e cultura produzida pela humanidade, em todas as épocas, para sua luta contra o modo de produção capitalista no presente, pois a sociedade socialista não irá brotar de um ideal pensado, fantasioso e romântico, mas das riquezas e dos destroços da velha sociedade.

A crise mundial do capitalismo, inaugurada em 2008 e que se aprofunda a cada ano, retirando direitos, gerando desemprego, fome e mortes em todo o mundo, propicia igualmente a consciência de classe aos trabalhadores e seus jovens. Desta forma, o contato, o diálogo e a utilização das produções artísticas do tempo presente são cruciais para a juventude, pois a capacita e energiza para os enfrentamentos contra governos burgueses, como de Bolsonaro, e pela construção do socialismo.

Logo, isso significa que a luta socialista não teme, de maneira alguma, a Arte. O sistema que teme, censura e desconfigura a Literatura, a Arte e a Cultura é o sistema capitalista, pois tudo o que toca, transforma em mercadoria e inverte seu valor humano. Assim, a defesa intransigente dos marxistas, nutridos pela militância de Marx, Engels, Lênin e Trotsky deve ser, portanto, a total independência da arte para a revolução, e a revolução para a total libertação da arte.

*Chico Aviz é militante da Liberdade e Luta e estudante de História

Referências: 

BRETON, André [et al.]. Por uma arte revolucionária independente. Tradução de Carmem Sylvia Guedes, Rosa Maria Boaventura. São Paulo: Paz e Terra: CEMAP, 1985.

MARX, Karl. Terceiro Manuscrito: Dinheiro. In:______. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/cap06.htm>. Acesso em: 18 dez. 19.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Introdução de Jacob Gorender. Tradução: Luis Claudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

TROTSKY, Leon. Literatura e Revolução. Tradução: Moniz Bandeira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969.

______. A Revolução Traída. Tradução: Olinto Beckerman. São Paulo: Global Editora, 1980.

______. Questões do Modo de Vida: A época do “militantismo cultural” e as suas tarefas. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1923/vida/index.htm>. Acesso em: 23 dez. 19.

Obs.: Todas as citações inseridas nesses textos.

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