SEGUNDA MARXISTA: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO MARXISMO – PARTE 2

imagem: novacultura.info

Nesta edição da Segunda Marxista, apresentamos a segunda parte do artigo publicado em 1908 por Georgi Valentinovitch Plekhanov, um dos principais responsáveis por introduzir o marxismo na Rússia e fundador da social-democracia russa. Nesse artigo ele aborda a concepção materialista de Feuerbach e suas limitações como ponto de partida para Marx e Engels elaborarem o materialismo histórico-dialético.

Parte 1

V

Um dos maiores méritos de Marx e Engels no que diz respeito ao materialismo é o de ter criado um método justo. Concentrando todos os seus esforços na luta contra o elemento especulativo da filosofia de Hegel, Feuerbach dela havia pouco apreciado e utilizado o elemento dialético. Ele declarava:

“A verdadeira dialética não é absolutamente um monólogo do pensador solitário consigo mesmo, é um diálogo entre o eu e o você”.

Mas, em primeiro lugar, para Hegel, a dialética não tinha tampouco o valor de um “monólogo do pensador solitário consigo mesmo” e, em segundo, a observação de Feuerbach define de forma justa o ponto de partida, mas não o método da filosofia. Esta lacuna foi preenchida por Marx e Engels, que compreenderam que não era necessário, ao combater a filosofia especulativa de Hegel, ignorar sua dialética. Alguns críticos afirmam que, nos primeiros tempos após sua ruptura com o idealismo, Marx manifestava também uma grande indiferença para com a dialética. Mas esta opinião, que parece verdadeira à primeira vista, é desmentida pelo fato, assinalado anteriormente, que já nos “Deutsch-französische Jahrbücher” (Anais Franco-Alemães), Engels tratava o método como a própria alma do novo método.

E em todo caso, a segunda parte da “Miséria da Filosofia” não deixa nenhuma dúvida sobre o fato que Marx, na época de sua polêmica com Proudhon, apreciava perfeitamente o valor do método dialético e sabia muito bem dele servir-se. Nesta discussão, a vitória de Marx sobre Proudhon foi a de um homem que sabe pensar dialeticamente sobre outro que não compreendia a essência da dialética, porém se esforçava em aplicar o método dialético na análise da sociedade capitalista. E esta mesma segunda parte da “Miséria da Filosofia” mostra que a dialética que, em Hegel, teve um caráter puramente idealista, e que assim se manteve em Proudhon na proporção em que ele assimilou, foi assentada por Marx sobre um fundamento materialista.

Posteriormente, caracterizando sua dialética materialista, Marx escrevia:

“Para Hegel, o processo lógico, que ele transforma em sujeito autônomo, denominando-o ideia, é o demiurgo da realidade, a qual não é outra coisa que sua manifestação exterior. Para mim, é justamente o contrário: o ideal é apenas o material transformado e traduzido no cérebro humano”.

Esta caracterização pressupõe um acordo completo com Feuerbach, em primeiro lugar, no que diz respeito à opinião sobre a “ideia” de Hegel e, em segundo, no que diz respeito às relações entre o pensamento e o ser. Apenas um homem convencido da justeza do princípio fundamental da filosofia de Feuerbach — não é o pensar que condiciona o ser, mas o ser que condiciona o pensar — era capaz de “colocar sobre seus próprios pés” a dialética hegeliana.

Muitas pessoas confundem a dialética com a doutrina da evolução. A dialética é, com efeito, uma doutrina da evolução. Mas ela difere essencialmente da “teoria da evolução” vulgar, que repousa essencialmente sobre o princípio que nem a natureza e nem a história dão saltos, e que todas as transformações no mundo só se dão gradualmente. Já Hegel demonstrara que, assim compreendida, a doutrina da evolução era inconsistente e ridícula. Diz ele no primeiro tomo de sua Lógica:

“Quando queremos representar o aparecimento ou o desaparecimento de qualquer coisa, os representamos geralmente como um aparecimento ou desaparecimento graduais. No entanto, as transformações do ser são, não apenas a passagem de uma quantidade à outra, mas também a passagem da quantidade à qualidade e, inversamente, passagem que, acarretando a substituição de um fenômeno por outro, é uma ruptura da progressividade”.

E cada vez que há uma ruptura da progressividade produz-se um salto no curso do desenvolvimento. Hegel mostra adiante, através de toda uma série de exemplos, com qual frequência se produzem saltos na natureza tanto quanto na história e desvenda o erro ridículo que está na base da “teoria da evolução” vulgar.

“Na base da doutrina da progressividade encontra-se a ideia que aquilo que surge já existe efetivamente e permanece imperceptível unicamente em razão de sua pequenez. Da mesma forma, quando se fala de desaparecimento gradual de um fenômeno, representa-se este desaparecimento como um fato consumado, como se o fenômeno que toma o lugar do procedente já existisse, mas ainda não sendo perceptíveis, nem um nem outro… Mas desta forma, suprime-se de fato todo aparecimento e todo desaparecimento… Explicar o aparecimento ou o desaparecimento de um fenômeno dado, pela progressividade da transformação, é levar tudo a uma tautologia fastidiosa, pois é considerar como previamente pronto (quer dizer, como já aparecido ou como já desaparecido) tudo aquilo que está em vias de aparecer ou de desaparecer”.

Marx e Engels adotaram inteiramente esta concepção dialética de Hegel, sobre a inevitabilidade dos saltos no processo do desenvolvimento. Engels a desenvolve de maneira detalhada em sua polêmica com Dühring e, nesta ocasião, ele a “coloca sobre os próprios pés”, quer dizer, sobre uma base materialista.

E assim ele mostra que a passagem de uma forma de energia à outra, não pode consumar-se de outra forma que por meio de um salto. Assim, ele procura na química moderna a confirmação do princípio dialética da transformação da quantidade em qualidade. Em geral, as leis do pensamento dialético são confirmadas, segundo ele, pelas propriedades dialéticas do ser. Aqui ainda, o ser condiciona o pensar.

Sem entrar numa caracterização detalhada da dialética materialista (no que concerne às suas relações com a chamada lógica elementar, paralelamente à matemática elementar, ver nosso prefácio à nossa tradução da brochura Ludwig Feuerbach), lembraremos ao leitor que a teoria que via no processo da evolução apenas modificações progressivas e que dominou no decorrer dos últimos vinte anos, começou a perder terreno mesmo no domínio da biologia, onde antes era quase que universalmente reconhecida.

Em relação a isto, os trabalhos de Armand Gautier e Hugo de Vries parece que deverão marcar época. É suficiente dizer que a teoria das mutações de Vries não é outra coisa que a teoria da evolução das espécies operando-se por saltos. (Ver sua obra em dois tomos: Die Mutationstheorie, Leipzig 1901-1903; seu relatório: Die Mutationen und die Mutationsperioden bei der Entstehung der Arten, Leipzig 1901, assim como suas conferências na Universidade da Califórnia, editadas em tradução alemã sob o título: Arten und Varietaten und ihre Entstehung durch die Mutation, Berlim 1906).

Na opinião deste eminente naturalista, o aspecto fraco da teoria de Darwin sobre a origem das espécies é precisamente a ideia que esta origem possa ser explicada por transformações graduais. Também muito interessante e justa é a observação de De Vries, que constata que a teoria das transformações graduais, que dominava na doutrina da origem das espécies, exerceu uma influência desfavorável sobre o estudo experimental das questões relativas a este domínio.

É preciso acrescentar que, nos meios naturalistas modernos, e muito particularmente entre os neolamarckistas, observa-se uma difusão bastante rápida da teoria da matéria animada, teoria segundo a qual a matéria em geral e a matéria orgânica, em particular, considerada por alguns como sendo diretamente aposta ao materialismo (ver, por exemplo, o livro de R. H. Francé: Der heutige Stand der Darwin’shen Frage, Leipzig 1907), representa na realidade, se ela é compreendida de forma justa, apenas a tradução, em linguagem naturalista moderna, da doutrina materialista de Feuerbach, da unidade entre o ser e o pensar, entre o objeto e o sujeito. Pode-se afirmar com certeza que Marx e Engels teriam mostrado o maior interesse por esta corrente das ciências naturais, que no momento está, na verdade, ainda muito insuficientemente estudada.

Alexandre Herzen diz com razão que a filosofia de Hegel, por muitos considerada como conservadora em alto grau, é uma verdadeira álgebra da revolução. Mas em Hegel, esta álgebra ficava sem nenhuma aplicação às questões candentes da vida prática. O elemento especulativo devia introduzir necessariamente o espírito de conservadorismo na filosofia do grande idealista. Ocorre diferentemente com a filosofia materialista de Marx. A “álgebra” revolucionária aí aparece com toda força invencível de seu método dialético. Marx diz:

“Em sua forma mística, a dialética se tornou moda alemã, porque ela parecia glorificar o estado de coisas existente. Em sua forma racional, a dialética não é, aos olhos da burguesia e de seus teóricos, senão escândalo e horror, porque além da compreensão positiva do que existe, ela engloba também a compreensão da negação, do desaparecimento inevitável do estado de coisas existente; porque ela considera toda forma sob o aspecto do movimento, portanto também sob seu aspecto transitório; porque ela não se inclina diante de nada e é, por sua essência, crítica e revolucionária”.

Se se considera a dialética materialista do ponto de vista da literatura russa, pode-se dizer que esta dialética foi a primeira a fornecer um método necessário e suficiente para a solução da questão do caráter racional de tudo aquilo que é, problema que tanto havia atormentado nosso genial Bielinski. Apenas o método dialético de Marx, aplicado ao estudo da vida russa, mostrou-nos o que havia de real e o que apenas parecia sê-lo.

VI

Quando abordamos a interpretação materialista da história, enfrentamos de início, como vimos, a questão de saber onde estão as verdadeiras causas do desenvolvimento das relações sociais. Já sabemos que a “anatomia da sociedade civil” é determinada por sua economia. Mas o que é que determina esta economia?

Marx responde:

“Na produção social de sua vida, os homens se acham ligados por certas relações indispensáveis, independentes de sua vontade, por relações de produção , que correspondem a um grau determinado da evolução de suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, o fundamento real sobre o qual se levanta a superestrutura jurídica e política”.

Esta resposta de Marx reduz, pois, toda a questão do desenvolvimento da economia às das causas que condicionam o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade. E, nesta última forma, a questão se resolve antes de mais nada pela indicação das propriedades do meio geográfico.

Já Hegel assinala, em sua filosofia da história, o papel importante da “base geográfica da história universal”. Mas como, para ele, a causa de toda evolução é no final de contas, a Ideia, e como ele só recorria à explicação materialista dos fenômenos de passagem e nos casos de importância secundária, por assim dizer, contra vontade, a concepção profundamente justa expressa por ele sobre a grande importância histórica do meio geográfico não poderia levá-lo a todas as fecundas conclusões que daí decorrem. Estas conclusões só foram tiradas em toda sua amplitude pelo materialista Marx.

As propriedades do meio geográfico determinam o caráter, tanto dos produtos da natureza dos quais se serve o homem para satisfazer suas necessidades, quanto dos objetos que ele produz para o mesmo fim. Onde não existiam metais, as tribos aborígenes não puderam ultrapassar com seus próprios meios os limites da chamada “idade da pedra”. Da mesma forma, para que os pescadores e os caçadores primitivos pudessem passar ao pastoreio e à agricultura, eram necessárias condições geográficas apropriadas, ou seja, uma fauna e uma flora correspondentes. L. G. Morgan observa que a ausência, no Hemisfério Ocidental, de animais passíveis de serem domesticados, assim como as diferenças existentes entre as floras dos dois hemisférios, explicam o curso tão diferente da evolução social de seus habitantes.

Waitz diz a respeito dos nativos da América do Norte:

“Entre eles é completa a ausência de animais domésticos. Este fato é muito importante, pois constitui o fator principal que os mantém num baixo nível de desenvolvimento”.

Schweinfurth relata que na África, quando uma localidade está superpovoada, uma parte da população emigra, modificando seu modo de vida segundo o meio geográfico.

As tribos que até então se ocupavam da agricultura, passam à caça, e tribos que viviam do pastoreio de seus rebanhos, passam à agricultura”.

Segundo Schweinfurth, os habitantes de uma região rica em ferro e que engloba uma parte considerável da África Central, naturalmente passaram a produzir e trabalhar o ferro.

Mas ainda não é tudo. Já nos mais baixos estágios da evolução humana, as tribos entram em relação umas com as outras, trocando entre si seus produtos. Isto tem por resultado alargar os limites do meio geográfico, o qual, por sua vez, influi sobre o desenvolvimento das forças produtivas de cada uma destas tribos, acelerando assim a marcha deste desenvolvimento. Mas é compreensível que a facilidade maior ou menor com a qual tais relações se estabelecem e se desenvolvem depende também das propriedades do meio geográfico.

Hegel já dizia que os mares e os rios aproximam os homens, enquanto as montanhas os separam. Os mares, porém, só aproximam os homens quando o desenvolvimento das forças produtivas já atingiu um nível relativamente elevado. Quando este nível é baixo, o mar — como diz tão justamente Ratzel — dificulta fortemente as relações entre as raças que ele separa. Mas, quaisquer que sejam, é indubitável que, quanto mais variadas são as propriedades do meio, mais elas são propícias ao desenvolvimento das forças produtivas. Diz Marx:

Não é a fertilidade absoluta do solo, mas sua diferenciação, a variedade de seus produtos naturais que constituem a base natural da divisão social do trabalho e que impulsionam o homem, em virtude da variedade das condições naturais em que vive, a variar suas necessidades e suas capacidades, seus meios e seus modos de produção”.

Quase nos mesmos termos que Marx, Ratzel diz:

“O que importa, sobretudo, não é uma maior facilidade de achar a alimentação, é que algumas tendências, certos hábitos e, finalmente, algumas necessidades sejam despertadas no próprio homem”.

Assim, portanto, as propriedades do meio geográfico determinam o desenvolvimento das forças produtivas que, por sua vez, determina o desenvolvimento das forças econômicas e, com estas, o de todas as outras relações sociais. Marx explica isto nos seguintes termos: “As relações sociais que os produtores contraem entre si, as condições de sua atividade recíproca e sua participação no conjunto da produção diferem também segundo o caráter das forças produtivas. A invenção de um novo instrumento de guerra, a arma de fogo, devia necessariamente modificar toda a organização interior do exército, as relações em cujo quadro os indivíduos formam um exército e que dele fazem um conjunto organizado enfim, também as relações entre exércitos diferentes”.

Para tornar esta explicação mais concludente, citaremos um exemplo. Os massais, na África oriental, matam seus prisioneiros porque — como diz Ratzel — este povo de pastores ainda não tem a possibilidade técnica de aproveitar utilmente seu trabalho de escravos. Mas os wakambas, que são agricultores próximos dos pastores, têm o meio de explorar este trabalho, e por isso deixam vivos seus prisioneiros, que escravizam. O aparecimento da escravidão pressupõe portanto que as forças sociais atingiram um grau de desenvolvimento que permite explorar o trabalho de cativos.

Mas a escravidão é uma relação de produção cuja aparição marca o início da divisão em classes numa sociedade que até então não conhecia outras divisões que as correspondentes ao sexo e à idade. Quando a escravidão atinge seu pleno desenvolvimento, marca toda a economia da sociedade e, através desta economia, todas as outras relações sociais e, antes de mais nada, o regime político. Diferentes que fossem os Estados antigos em seus regimes políticos tinham todos um traço comum: cada um deles era uma organização política que expressava e defendia os interesses dos homens livres.

VII
Sabemos agora que o desenvolvimento das forças produtivas que determina em definitivo, o desenvolvimento de todas as relações sociais depende das propriedades do meio geográfico. Mas, uma vez que certas relações sociais surgem, elas exercem uma grande influência sobre o desenvolvimento das forças produtivas. De forma que aquilo que primitivamente foi uma consequência se torna, por sua vez, causa; entre a evolução das forças produtivas e o regime social, se produz uma ação e uma reação recíprocas que tomam, em diferentes épocas, as formas mais variadas.

Importante reafirmar que o estado das forças produtivas condiciona não apenas as relações interiores existentes no seio de uma dada sociedade, mas também suas relações exteriores. A cada grau do desenvolvimento das forças produtivas corresponde um caráter determinado do armamento, da arte militar e, por fim, do direito internacional, ou mais precisamente do direito intersocial e do direito entre tribos (dentre outros). As tribos de caçadores não têm condições de constituir organizações políticas consideráveis precisamente porque o baixo nível de suas forças produtivas as obriga, segundo uma velha expressão russa, a se dispersar cada um por si, em pequenos grupos sociais à procura de sua subsistência.

Porém, quanto mais estes grupos sociais “se dispersam cada um por si”, mais é inevitável que se travem lutas mais ou menos sangrentas para resolver aqueles litígios que, numa sociedade civilizada, poderiam facilmente ser ajustados por um juiz de paz. Eyre relata que quando várias tribos australianas se encontram para certos fins, numa localidade determinada, estes contatos jamais são de longa duração. Antes mesmo que a falta de alimento ou a necessidade de caçar tenham obrigado os aborígines australianos a se separarem, eclodem entre eles conflitos que culminam rapidamente em batalhas.

Todos compreendem que semelhantes choques podem produzir-se pelas causas mais diversas. Mas é notável que a maioria dos viajantes as atribuam a causas econômicas. Quando Stanley perguntava aos indígenas da África Equatorial porque eles guerreavam com as tribos vizinhas, eles lhe respondiam:

“Os nossos partem à caça. Os vizinhos os rechaçam. Então nós atacamos os vizinhos, eles por sua vez nos atacam e nos batemos até que não aguentemos mais ou que um dos dois campos seja vencido”.

Burton também diz:

“Todas as guerras na África têm duas causas principais: o roubo de gado ou a captura de homens”.

Ratzel considera provável que, na Nova Zelândia, as guerras entre indígenas não tivessem frequentemente outro motivo que o desejo de se regalar com carne humana. Mas a própria inclinação acentuada dos indígenas para a antropofagia se explica pela pobreza da fauna neozelandesa.

Todos sabem quanto o resultado de uma guerra depende do armamento das partes beligerantes. Mas seu armamento é determinado pelo estado de suas forças produtivas, por sua economia e pelas relações sociais que se constituíram sobre a base desta economia. Dizer que tais povos ou tais tribos foram conquistados por outros povos ainda não é explicar por que as repercussões sociais de sua subjugação foram precisamente umas e não outras. As consequências sociais da conquista da Gália pelos romanos não foram absolutamente as mesmas que as da conquista deste país pelos germânicos.

As consequências sociais da conquista da Inglaterra pelos normandos não foram absolutamente as mesmas acarretadas pela conquista da Rússia pelos mongóis. Em todos estes casos, a diferença foi determinada, em última análise, pela diferença existente entre o regime econômico da sociedade que tinha sido subjugada e o da sociedade que a havia subjugado. Quanto mais as forças econômicas de tal tribo ou tal povo se desenvolvem, mais aumenta para esta tribo ou este povo a possibilidade de, pelo menos, melhor se armar tendo em vista a luta pela existência.

Esta regra geral, entretanto, admite numerosas exceções a que devemos nos ater. Quando o desenvolvimento das forças produtivas está num nível muito baixo, a diferença no armamento de tribos que se encontram em estágios muito diferentes de desenvolvimento econômico — por exemplo, os pastores nômades ou os agricultores sedentários — não pode ser tão grande quanto se tornará posteriormente. Além disso, a progressão na via do desenvolvimento econômico, exercendo uma influência determinante sobre o caráter de um dado povo, diminui seu espírito guerreiro, algumas vezes a tal ponto que o torna incapaz de se opor a um inimigo economicamente mais atrasado, mas em compensação, mais acostumado à guerra.

Por isso não é raro que tribos pacíficas de agricultores caiam sob o jugo de povos com inclinações pra guerra. Ratzel observa que os mais sólidos organismos estatais são criados por “povos semicultos” porque estes dois elementos — o elemento agrícola e o elemento pastoril — foram reunidos pela conquista. Por genericamente justa que seja esta observação, é necessário lembrar que, mesmo em tais casos — a China é um excelente exemplo disso — , os conquistadores economicamente atrasados sofrem completamente, pouco a pouco, a influência do povo conquistado, economicamente mais avançado.

O meio geográfico exerce grande influência não apenas sobre as tribos primitivas, mas também sobre os chamados povos cultos. Marx diz:

“A necessidade de estabelecer um controle social sobre tal força natural, de explorá-la de forma econômica, de captá-la de início ou domá-la por meio de obras consideráveis, erigidas pelo esforço humano organizado, esta necessidade exerce um papel decisivo na história da indústria. Tal foi a importância da regulamentação das águas no Egito, na Lombardia, nos Países Baixos, na Pérsia e na Índia, onde a irrigação por meio de canais artificiais leva ao solo não apenas a água indispensável, mas, ao mesmo tempo, com o barro que esta carrega, o fertilizante mineral das montanhas. O segredo da arrancada da indústria na Espanha e na Sicília sob a dominação árabe residia na canalização”.

A doutrina da influência exercida pelo meio geográfico sobre a evolução histórica da humanidade era frequentemente reduzida ao simples reconhecimento da influência imediata do “clima” sobre o homem social: supunha-se que, sob a influência do “clima”, uma “raça” tornava-se amante da liberdade, outra tendia a sofrer pacientemente o poder de um soberano mais ou menos despótico, uma terceira tornava-se supersticiosa e logo caía na dependência do clero. Tal concepção prevalece ainda, por exemplo, em Buekle. Segundo Marx, o meio geográfico age sobre o homem por intermédio das relações de produção que nascem num meio determinado, sobre a base de forças de produção determinadas, cuja primeira condição de desenvolvimento é representada precisamente pelas propriedades desse mesmo meio. A etnologia moderna se aproxima cada vez mais deste ponto de vista e portanto vai reservando à “raça” um lugar cada vez mais restrito na história, da “civilização”.

“A posse de algum patrimônio de civilização nada tem a ver com a raça em si”.

Ratzel

Mas uma vez atingido em certo estado de “civilização”, ele exerce incontestavelmente sua influência sobre as qualidades físicas e psíquicas da “raça”.

A influência do meio geográfico sobre o homem social representa uma quantidade variável. A evolução das forças produtivas condicionada pelas propriedades deste meio aumenta o poder do homem sobre a natureza e, por isso mesmo, cria uma relação nova entre o homem e o meio geográfico ambiente. Os ingleses de nossos dias reagem a este meio de modo muito diverso que as tribos que povoavam a Inglaterra no tempo de Júlio César. Com isto se encontra definitivamente descartado o argumento segundo o qual o caráter da população de um dado país pode transformar-se fundamentalmente, mesmo que as condições geográficas permaneçam as mesmas.

VIII
As relações jurídicas e políticas engendradas por uma dada estrutura econômica exercem uma influência decisiva sobre toda a psicologia do homem social . Marx diz:

“Sobre as diferentes formas da propriedade, sobre as condições sociais de existência, vem-se erigir toda uma superestrutura de sensações, ilusões, maneiras de pensar, de conceber a vida, todas diversas e singulares em seu gênero”.

O “ser” determina o “pensar”. E podemos dizer que cada novo progresso realizado pela ciência na explicação do processo do desenvolvimento social, representa um novo argumento em favor desta tese fundamental do materialismo moderno.

Já em 1877, Ludwig Noiré escrevia:

“Foi à atividade em comum, dirigida para um objetivo comum, foi o trabalho primordial de nossos ancestrais que produziram a linguagem e a vida cultural”.

Desenvolvendo este notável pensamento, L. Noiré indica que, primitivamente, a linguagem designa as coisas do mundo objetivo, não como figuras mas como coisas que adquiriram uma figura (nichtals Gestalten, sondernals gestaltete), não como seres ativos exercendo uma ação, mas como seres passivos sofrendo uma ação. E ele explica isso por intermédio da consideração justa de que “todas as coisas surgem no campo visual do homem, ou seja, elas adquirem para ele existência de coisas, unicamente na medida em que sofrem sua ação, e é de acordo com isso que elas recebem suas denominações, seus nomes”.

Em resumo, é a atividade humana, na opinião de Noiré, que dá conteúdo às raízes primitivas da linguagem. É interessante constatar que Noiré via o primeiro germe de sua teoria no pensamento de Feuerbach segundo o qual a essência do homem reside na comunidade, na unidade do homem com o homem. Visivelmente ele ignorava totalmente Marx; senão teria percebido que sua concepção do papel da atividade na formação da linguagem é mais próxima da de Marx que, em sua teoria do conhecimento, insistia sobretudo na atividade humana, em oposição a Feuerbach, que falava de preferência da “contemplação”.

É desnecessário relembrar, a propósito da teoria de Noiré, que o caráter da atividade humana no processo da produção é determinado pelo estado das forças produtivas. Isto é evidente. E mais útil notar que a influência decisiva do modo de existência sobre o pensamento é particularmente visível nas raças primitivas, cuja vida social e intelectual é incomparavelmente mais simples que a dos povos civilizados. Van den Steinen escreve a respeito dos indígenas do Brasil central, que nós só os compreenderemos ao considerá-los como o produto de uma sociedade baseada na caça. “A fonte principal de sua experiência”, diz ele, “era seu contato com os animais, e é sobretudo desta experiência que se valiam… para explicar a natureza, para formar uma concepção do mundo”.

As condições de uma vida feita de caças determinaram não apenas a concepção do mundo própria a estas tribos, mas também suas idéias morais, seus sentimentos e (observa o mesmo autor) até seus gostos artísticos. E vemos exatamente a mesma coisa entre os povos pastores. Dentre aqueles que Ratzel chama de povos pastores exclusivos, o “assunto de noventa por cento das conversações é o gado, suas origens, seus hábitos, suas qualidades e seus defeitos”. Os infelizes herreros, que os “alemães civilizados” recentemente pacificaram com tanta crueldade bestial, pertenciam a estes “povos pastores exclusivos”.

Urna vez que a principal fonte de experiência era para o caçador primitivo o gado e toda a sua concepção do mundo se baseava sobre esta experiência, não é de admirar que na mesma fonte tenha sido colhido o conteúdo de toda a mitologia das tribos de caçadores, que para estes faz as vezes tanto de filosofia quanto de teologia e ciência. “O que caracteriza a mitologia dos bosquímanos”, diz Andrew Lang, “é o papel quase exclusivo que aí representam os animais. Com exceção de uma velha mulher que aparece aqui e ali em suas lendas incoerentes, o homem aí não representa nenhum papel”. Segundo Br. Smith, os indígenas da Austrália que, como os bosquímanos, ainda não estão no estágio da caça, têm principalmente por deuses os pássaros e os animais.

A religião das raças primitivas não está, no momento, ainda suficientemente pesquisada. Mas o que dela já sabemos confirma absolutamente a justeza da breve fórmula de Feuerbach: “não é a religião que faz o homem mas é o homem que faz a religião”. Taylor diz: “É evidente que, entre todos os povos, o homem era o protótipo da divindade. Isto explica porque a estrutura da sociedade humana e seu governo se tornam o modelo sobre o qual se representam a sociedade celeste e o governo dos céus”.

Sem dúvida isto já é uma concepção materialista da religião. Sabe-se que Saint-Simon sustentava um ponto de vista oposto, que ele explicava o regime social e político dos antigos gregos, por suas crenças religiosas. Bem mais importante ainda, porém, é o fato que a ciência já começa a descobrir a relação causal existente entre o desenvolvimento da técnica das raças primitivas e sua concepção do mundo. É certo que descobertas numerosas e preciosas a esperam, por este lado.

De todas as ideologias da sociedade primitiva, a arte é atualmente a que foi melhor pesquisada. Neste domínio reuniram-se materiais extremamente abundantes que constituem a prova mais inatacável e a mais concludente da justeza e, porque não dizer, da inevitabilidade da interpretação materialista da história. Estes materiais são tão numerosos que só podemos enumerar aqui as obras mais importantes da literatura sobre o assunto:

Schweinfurth, Artes Africanae, Leipzig 1875; R. Andree, Ethnographische Parallelen, artigo intitulado Das Zeichnen bei den Naturvölkern; Von den Steinen, Unter den Naturvölkern Zentral-Brasiliens. Berlim 1894; C. Mallery. Picture Writing of the American Indians — Annual Report 0f the Bureau of Ethnology, Washington 1893 (os relatórios dos outros anos contêm informações preciosas sobre a influência exercida pela técnica, principalmente da arte têxtil, na ornamentação); Hoernes, Urgeschichte der bildenden Kunst in Europa, Viena 1898; Ernest Crosse, Die Anfange der Kunst e seu outro livro: Kunstwissenschaftliche Studien, Tübingen 1900; Yrjö Hirn, Der Ursprung der Kunst, Leipzig 1904; Karl Bücher, Arbeit und Rhythmus, 3ª. edição, 1902; Gabriel e Adr. de Mortillet, Le Préhistorique, Paris, 1900; páginas 217-230; Hörnes, Der diluvuale Mensch in Europa, Brunswick 1903; Sophus Müller, L’Europe préhistorique, traduzido do dinamarquês por Em. Philippot, Paris 1907; Rich. Wallascheck, Anfänge der Tonkunst, Leipzig 1903.

Veremos, de acordo com as teses que se seguem, recolhidas entre os autores acima citados, quais são as conclusões às quais a ciência moderna chega na questão do nascimento da arte.

Hornes diz:

“A arte ornamental só pode desenvolver-se partindo da atividade industrial, que é sua condição material prévia… Povos sem nenhuma indústria não têm ornamentação e não podem absolutamente tê-la”.

Von den Steinen avalia que o desenho (Zeichnen) surgiu dos signos (Zeichen) adotados em objetivos práticos para designar os objetos.

Bücher chegou à seguinte conclusão:

“O trabalho, a música e a poesia deviam, em seu estágio primitivo, formar um amálgama único, mas que o elemento fundamental desta trindade era o trabalho, enquanto os dois outros só tinham valor acessório”.

Em sua opinião, “a origem da poesia deve ser buscada no trabalho”. Ele observa que nenhuma língua dispõe em ordem rítmica as palavras que formam uma proposição. É portanto impossível que os homens tenham chegado à linguagem poética cadenciada, pela via do emprego de sua linguagem comum. A isto se opunha a lógica interna desta última. Mas como explicar o nascimento da linguagem ritmada? Bücher supõe que os movimentos rítmicos e coordenados do corpo comunicaram à linguagem figurada as leis de sua coordenação. É ainda mais plausível que, nos graus inferiores da evolução, estes movimentos rítmicos sejam habitualmente acompanhados de canto. Mas como se explica a coordenação dos movimentos corporais? Pelo caráter dos processos de produção. Assim, portanto, “o segredo da versificação reside na atividade produtiva”.

R. Wallascheck formula sua concepção sobre a origem das produções cênicas entre as raças primitivas nos seguintes termos:

“Os temas destes jogos cênicos eram:

  1. a caça, a guerra, a canoa (entre os caçadores, a vida e os hábitos dos animais; pantomimas animalescas e máscaras);
  2. a vida e os hábitos do rebanho (entre os povos pastores);
  3. o trabalho (entre os agricultores: a semeadura, a debulha do trigo, o cultivo das vinhas).

A representação é assegurada por toda a tribo (coro) que canta e representa. Cantam-se quaisquer palavras, pois o conteúdo dos cantos é precisamente o aspecto cênico (pantomima). Só se interpretam os atos da vida cotidiana, cuja execução é absolutamente necessária na luta pela existência”. Wallascheck diz que, num grande número de tribos, quando acontecem tais representações, o coro era dividido em duas partes colocadas uma na frente da outra.

“Tal era o aspecto primitivo do drama grego, que originariamente era também uma pantomima animalesca. O animal que tinha maior papel na vida econômica grega era a cabra, de cujo nome deriva a palavra tragédia (tragos, bode)”.

É impossível imaginar ilustração mais brilhante da tese, segundo a qual não é o ser que é determinado pelo pensamento, mas o pensamento pelo ser.

PUBLICADO EM MARXISTS.ORG

Parte 3

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