Suicídios na USP e a precariedade dos programas de permanência
As recentes mortes por suicídio de universitários da USP abriram a pauta para discussões e denúncias sobre a qualidade de vida, de moradia e o relacionamento dos estudantes com a instituição de ensino, sobretudo entre aqueles que dependem dos recursos das políticas de permanência para que possam continuar estudando.
Entre maio e junho deste ano, quatro estudantes tiraram a própria vida, sendo um deles no próprio espaço de moradia universitária, o Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (Crusp). Essas tragédias têm sido encaradas pela instituição como fruto do sofrimento individual dos alunos já que, para dar encaminhamento à questão, os diversos setores da USP se engajaram apenas em tarefas como conectar à rede de auxílio em saúde mental, promover rodas de conversa, distribuir materiais informativos, ampliar canais virtuais de atendimento aos alunos etc.
A crítica a esta condução por parte da universidade não deve ser encarada enquanto negação da importância de acolhimento individual em saúde mental. As pessoas em sofrimento emocional devem receber atenção profissional o quanto antes por serviços com ampla capacidade de absorção e dotados de seriedade no manejo desses casos. O que se adiciona, portanto, é a responsabilidade da instituição de ensino com o bem-estar integral dos seus estudantes, especialmente aqueles que moram no espaço da universidade e dependem de auxílios financeiros para levar seus estudos adiante. Uma questão que se anuncia há anos por meio de queixas e reivindicações, mas apenas na carona de grandes perdas, tem recebido mais visibilidade.
Cada artigo que passa a circular na mídia sobre a perda dos estudantes retoma as denúncias sobre a condição insalubre das moradias do campus – constante falta de água, infiltrações, rachaduras – e as duras penas de todos os estudantes para conclusão dos cursos, seja por questões financeiras ou pelo nível de exigência de desempenho. Além da falta de diálogo com estudantes-moradores que, por exemplo, denunciam o anúncio de uma reforma nos prédios de moradia, mas sem cronograma ou garantias de retorno às habitações1.
O Crusp conta com oito prédios, construídos nos anos 1960, no campus Butantã. O recurso de moradia é destinado aos alunos com baixo poder aquisitivo, o que marca o espaço pela presença de jovens que não têm outra opção além de contar com os auxílios do programa de permanência para manterem-se nos estudos. A permanência estudantil é um direito do estudante para ter acesso à educação e, assim, o programa direciona recursos para amenizar os impactos da desigualdade econômica no espaço acadêmico, oferecendo, basicamente, auxílio de moradia, alimentação e transporte.
Entretanto esses auxílios são insuficientes para garantir o bem-estar dos alunos e o acesso à educação. Uma pesquisa conduzida pelo professor doutor Thiago Marques Leão, desde 2020, busca avaliar a relação entre o sofrimento psíquico dos estudantes e a universidade em tempos de crise. Considerando os estudantes da Faculdade de Saúde Pública, até agora, o estudo aponta que o maior sofrimento dos estudantes, na verdade, está relacionado à própria universidade. Em entrevista, Leão aponta que o sofrimento tem mais relação com a quebra das expectativas dos estudantes sobre a jornada universitária, ao se deparar com dificuldades e falta de recursos; com a falta de perspectiva quanto as oportunidades de vida e emprego após a formação; bem como com as altas cobranças por desempenho e produtividade. O professor ainda marca que os alunos com baixa condição socioeconômica e sem registros de experiência universitária por parte de outras pessoas próximas sofrem ainda mais com esses fatores. A entrevista aponta que será iniciada a nova fase do estudo, prevista para este mês de agosto, com estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP2.
Outra pesquisa, realizada por Tânia Araujo, doutora em saúde pública, e Daniel Vasconcelos, doutorando em Geografia na USP, se debruçou sobre o nível de insegurança alimentar entre os moradores do Crusp no período da pandemia, mas também expôs a situação das habitações que há anos não recebem manutenção e, por conta disso, os moradores não podem usar a cozinha coletiva por falta de fogões e encanamento e nem mesmo manter um fogão elétrico pelo risco de sobrecarga na parte elétrica e incêndios. A pesquisa, que apontou que 85% dos participantes da pesquisa está em situação de insegurança alimentar, foi entregue ao site The Intercept, após ser recusada por diversos setores da USP, mesmo tendo sido aprovada pelo comitê de ética para seu desenvolvimento3.
A performance limitada dos programas de permanência denuncia uma instituição pouco comprometida em garantir condições materiais aos seus estudantes – como se estivesse ofertando um benefício, ao invés de entregar um direito – e a garantia da saúde mental por meio de condições concretas que permitam que o estudante tenha os recursos necessários para avançar em sua graduação é, também, um direito.
À jornada de estudo no ensino superior já se somam questões, desde o ingresso em uma universidade pública tão concorrida, com alto grau de sacrifícios e esforços até sua conclusão. Ao longo do percurso acadêmico, as exigências por produtividade se mantêm juntamente com a angústia quanto à validade e às perspectivas de desdobramentos destes esforços no futuro. Além disso, o fato de os estudantes saírem de suas casas, traz bruscas mudanças de vida e a eventual falta de referência que isso pode trazer amplia a condição de insegurança e de efeito das pressões. Somados aos fatores emocionais, os fatores concretos também estão relacionados à saúde mental. Em um levantamento4, pesquisadores puderam confirmar que as condições de pobreza atuam negativamente na saúde mental das pessoas, gerando, inclusive um ciclo de adoecimento e privação até níveis mais severos. Neste sentido, ressalta-se a importância de recursos concretos capazes de suprir as necessidades materiais mais elementares dos estudantes e mostra que o acesso à educação vai além do ingresso em uma escola ou universidade. As condições materiais devem estar dadas a fim de retirar o dilema secular dos jovens do proletariado: escolher entre os estudos e a sobrevivência.
Diante desse fato, evidencia-se a necessidade de transformação do ambiente universitário para que realmente atenda aos interesses dos estudantes e a sua saúde e integridade emocional. Um programa mínimo deve reivindicar que todos os jovens que desejem cursar uma faculdade tenham acesso a ela, com ampla oferta de vagas, sem precisar de vestibulares, pagar mensalidades ou taxas e com políticas de permanência que realmente assegurem um período de estudos com qualidade para todos os estudantes. Ademais, este programa precisa estar atrelado à construção de uma universidade pública, gratuita e para todos, em que os lucros e o elitismo na educação sejam superados, na luta pelo socialismo, por uma sociedade em que a juventude possa sonhar e avançar para sua emancipação.
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Referências:
A reforma do Crusp e a necessidade de uma assembleia. Liberdade e Luta. 2021. Disponível em: https://liberdadeeluta.org/node/814. Acesso em: 18 de agosto de 2021.
Basilio, Ana Luiza. Suicídios na USP: A pandemia não é a única razão para o sofrimento psíquico dos estudantes. Carta Capital. 2021. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/educacao/suicidios-na-usp-a-pandemia-nao-e-a-unica-razao-para-o-sofrimento-psiquico-dos-estudantes/?utm_source=leiamais. Acesso em: 18 de agosto de 2021.
Ribeiro, Paulo Victor. Esta é a marmita que a USP oferece aos alunos pobres durante a pandemia. The Intercept Brasil. 2021. Disponível em: https://theintercept.com/2020/11/09/pesquisa-inseguranca-alimentar-fome-crusp-usp/. Acesso em: 18 de agosto de 2021.
Silva, D. F., & Santana, P. R. de S. (2012). Transtornos mentais e pobreza no Brasil: uma revisão sistemática. Tempus – Actas De Saúde Coletiva, 6(4), Pág. 175-185. Disponível em: https://www.tempusactas.unb.br/index.php/tempus/article/view/1214. Acesso em: 18 de agosto de 2021.