Relato de um morador do BLOCO F do CRUSP

Artigo publicado na terceira edição do boletim “O Prometeu” do núcleo da Liberdade e Luta USP

Escrever uma carta não é uma tarefa fácil, principalmente quando ela deve carregar a descrição de uma experiência pessoal de maneira que consiga dizer além dessa experiência pessoal, eu escrevo para os futuros cruspianos, nada como uma dose de realidade para se preparar para o que está por vir. 

O objetivo é então descrever a rotina que tem sido viver no bloco F do conjunto residencial da USP, essa história não tem apenas valor de experiência nostálgica de quem escreve, mas sim carrega o valor de ser uma experiência que cruza com a de inúmeras outras pessoas que já passaram pelo CRUSP e talvez esclareçam que os ataques que recebemos em 2022 partem de uma mesma gama de ataques aos quais pertencem os de 1990 ou 2011, é uma continuidade na tentativa da USP de desorganizar e desalojar o conjunto dos estudantes pobres da universidade, potencialmente perigosos para uma instituição que é em sua maioria frequentada por filhos da burguesia ou da camada pequeno-burguesa mais abastada que consegue pagar por uma educação completa para seus filhos, com todas as coisas inclusas, dentre elas a possibilidade de ter uma vida estável para se concentrar nos estudos, para os filhos da classe trabalhadora essa equação é mais nebulosa e difícil. 

O CRUSP nasce de uma ocupação e se mantém assim embora no momento a crise da direção do proletariado também afete as finas paredes de isopor com papelão, e, por isso, atualmente o conjunto dos moradores possuem uma profunda desconfiança na organização e luta pela ocupação e melhora do conjunto, e isso é fruto de uma descrença na atividade política da associação de moradores. Ora, se era preciso um elemento de ligação na experiencia cruspiana, mesmo que, obviamente todos não conheçam todos por aqui, esse elemento comum se mostrou desde o começo como a luta contra as péssimas condições do conjunto residencial, externamente e internamente, que possuem uma série de carência nos apartamentos, sejam elas de sistema elétrico, hidráulico, falta de internet estável, falta de fogões, etc. Comecemos então pelos fogões, já que é preciso começar de algum lugar. Cheguei em São Paulo em fevereiro de 2018, logo após descobrir que tinha conseguido entrar na USP pelo ENEM, e foi um alívio imediato descobrir que existiam os apartamentos para os estudantes que vinham de longe ou que não tinham condições de sobreviver, era uma peça especial em um jogo muito difícil que é o de se manter vivo e com dignidade. 

A princípio, consegui entrar nos alojamentos emergenciais que ficam localizados no bloco C e que tem uma divisão diferente do CRUSP normal. Nos alojamentos emergenciais, várias pessoas moram em um mesmo quarto com camas individuais, nos alojamentos do térreo do bloco C (em outros existem outros tipos de camas e divisão do espaço). Eu diria que é o primeiro momento em que se percebe que as coisas não serão fáceis. O alojamento era composto basicamente por pessoas desempregadas e que não tinham direito ao auxílio da USP de 400 reais. Isso teve impacto imediato já nos primeiros feriados, consigo me lembrar de um mutirão na semana santa para pegar o máximo possível de pães do bandejão, pois teríamos um período sem restaurante e consequentemente sem comida, fizemos uma bacia cheia de pães e conseguimos sobrevive.época ainda tínhamos fogões no bloco, e, em alguns momentos fazíamos comidas compartilhadas, dividindo entre o que tínhamos, uma experiência formadora da camaradagem e de ajuda mútua ímpar que surge desse tipo de condição onde se luta para sobreviver ou ter o mínimo.

Essa foi a tônica desse primeiro momento, no segundo semestre, depois de uma busca sofrida por apartamentos com vaga, consegui entrar no CRUSP oficial, no bloco F, naquele tempo ainda tínhamos fogões. Quando digo sofrido, falo no sentido de que muitas forças tentam expulsar pessoas vulneráveis da universidade e da moradia. Sem exagero, tive que bater em todas as portas de todos os blocos e ouvir uma série de nãos, inclusive em apartamentos com vaga, mas que passavam por alguma situação complicada. O outro fator foi a assistência social que dificultava a nossa entrada e não garantia nada além de um documento inútil que dizia que eu era morador regular, ou melhor, que eu tinha direito a ser morador regular. Depois disso, nenhuma ajuda, era por conta própria a procura da casa, nesse tempo eu tinha 17 anos e estava um tanto preocupado, os primeiros sinais de ansiedade surgem nesse período e depois daí ficaram. Mas nessa época ainda tínhamos fogões.

A vida no bloco F sempre foi marcada por camaradagem com meus pares, gente da mesma situação ou em situação pior, criou-se e cria-se uma rede de ajuda, que, embora seja como um fio que pode romper a qualquer momento, sempre foi o elemento que impediu a mim de surtar por aqui, questões de saúde mental acontecem bastante no CRUSP. 

Naquela época tínhamos fogões no bloco F apenas em dois andares, se não me falha a memória, e eles serviam para nossas refeições nos períodos em que éramos deixados na mão pela USP. Os feriados tem certa conotação negativa para mim depois de toda essa experiência,nquanto para alguns é um momento de alívio da rotina pesada das leituras e trabalho, para mim a conotação era a de procurar como se alimentar sem a ajuda do bandejão. Para muitos moradores o bandejão é central para a sobrevivência, sem ele, as pessoas acabam não se alimentando direito, ainda mais com o avanço da crise, que afeta o poder de compra dos cruspianos com força. 

Quando estourou a pandemia, já não tínhamos mais fogões, máquina de lavar, e em muitos momentos água para beber ou tomar banho. A questão da água é antiga e fixa por aqui, certo dia eu estava olhando uma postagem de lembrança de um antigo cruspiano e ele se queixava anos atrás já do mesmo problema. Embora a USP sempre se justifique dizendo ser algo localizado. 

A USP tem sido para o CRUSP tal qual os políticos demagógicos são com seus eleitores. A eterna promessa de uma reforma, a eterna promessa de uma internet estável e rápida como nos outros lugares do campus, mas entra geração, sai geração, e as pessoas simplesmente se acostumam a entender que é apenas uma promessa vazia. Pelo menos no mundo das ideias onde a USP acha que os moradores ficarão imóveis. Na realidade esse tipo de situação joga para a luta política por moradia pessoas que outrora não pensavam nisso. Um caso emblemático foi o Boat Show durante a pandemia, um evento milionário acontecendo do lado do CRUSP, enquanto toda essa situação acontecia na vida dos moradores. Obviamente aconteceram protestos. E, dado o acúmulo de raiva, o protesto excedeu o que a universidade esperava e causou uma série de transtornos para a faculdade e os milionários amantes de barcos. Nesse dia alguns cruspianos junto com algumas organizações fecharam com as grades do evento a estrada por onde vinham os moradores de mansão, e isso causou raiva neles de um modo que o Boat Show não tornaria a acontecer por aqui por essas bandas, os cruspianos retornavam ao histórico de causar transtornos contra as idiotices que a USP faz naturalmente.  

Alguns meses atrás, aconteceu um caso no meu apartamento que acho ser importante para descrever bem como funciona por aqui internamente. Mas para isso é preciso descrever eventos anteriores, pois o inferno cruspiano está no acúmulo de questões sem resolução. Algum tempo antes do caso, estávamos com um vazamento no registro de água, que só podia ser aberto ou fechado com um alicate, por estar quebrado, quando começou esse antigo vazamento, não conseguimos ajuda da zeladoria, pois os trabalhadores vivem há bastante tempo com o mínimo possível de equipamento, com o mínimo possível de equipe e com o máximo possível de questões para resolver nos apartamentos. Sem a ajuda da zeladoria, resolvemos colocando uma fita isolante no registro. Ficou completamente vedado. Em outro momento, a torneira da pia começou a vazar também e nossa solução foi apertá-la com um pano, pois o vazamento estava relacionado com o fato de estar folgada, essa solução funcionou paliativamente, enquanto esperávamos a ajuda da zeladoria. Daí, o dia do caso. Era noite, íamos assistir algum filme, como geralmente fazemos por aqui em casa, estávamos todos nos colocando da maneira mais confortável possível, relaxando a mente, até o momento em que um dos moradores foi até a pia para tentar apertar o pano da torneira, que estava vazando mais água que o normal. Quando ele puxou o pano, toda a torneira saiu! Vazamento com pressão de água, o apartamento começou rapidamente a alagar, esse morador colocou a mão no buraco de onde saía a água para impedir que o fluxo de água fosse maior do que estava, ele tomou um banho nesse dia como ninguém, o troféu de ouro de uma experiência cruspiana intensa. Alguns segundos depois de estourar, eu consegui esboçar uma reação, corri até o registro para fechar a água do apartamento, porém, ele estava com várias camadas de fita isolante, desespero, desci correndo para a portaria e tentei explicar desesperadamente o que rolava alguns andares ali em cima. Ele disse que não sabia bem o que fazer, afinal a empresa que é responsável pelas portarias não passou nenhuma diretriz para situações emergências como essas, ainda mais durante a noite, quando não existe zeladoria, que trabalhava até as 15:00. Esse porteiro me ajudou a fechar o registro do bloco todo, mas não serviu de nada, pois o bloco tem uma caixa de água que precisaria se esgotar para cessar finalmente a água, corri então para encontrar uma guarda que estava no térreo do bloco G, ela disse também não saber o que fazer, que era melhor falar com a guarda oficial da USP, já que a empresa que presta esse serviço não passou nenhuma diretriz para esse tipo de situação emergencial. Ligar para a guarda, ok! Porém o rádio estava com problema nesse momento e ela não conseguiria contatar os guardas. Percebi que estava perdendo tempo ali embaixo, subi para puxar a água dos quartos para o ralo, infelizmente, temos apenas um ralo, estávamos todos puxando água para esse lugar, ligamos para a guarda universitária. Eles a princípio não sabiam o que fazer mas, na verdade, não estavam entendendo a situação caótica que estava sendo descrita. Disseram não saber o que fazer, pois não tinha zeladoria no momento, desespero, eu peguei uma faca e fui ao banheiro para cortar a fita isolante, enquanto isso a pessoa do outro lado do telefone me explicava que nada podia fazer mas mandaria alguém para olhar a situação, consegui cortar as fitas isolantes depois de um tempo, peguei o alicate e comecei a girar até o momento em que parou o fluxo de água e libertei meu amigo do banho eterno, muitas coisas se molharam e o apartamento estava alagado. Quando já estava tudo calmo, um guarda chegou e falei que já tinha resolvido parcialmente e estávamos puxando a água, ele ficou falando sobre como era um absurdo conosco essa situação, que deveria ter manutenção durante a noite e feriados para esses casos emergenciais. Era tudo verdade, mas a USP não está preocupada com isso, não está na ordem do dia. Puxamos a água, ajeitamos a TV e começamos a ver o filme que tínhamos programado para ver, não era um bom filme, não era uma boa casa.   

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